Coisa de louco
Toda cidade que se preze tem sua rival – aquela vizinha e próxima a que se atribui os piores defeitos do mundo, com que se mantém uma rivalidade constante e que é motivo de constantes gozações, numa picuinha de irmãs que aparentam se odiar, sem saber que é um profundo amor que as une em um destino comum.
Talvez para melhor passarem o tempo que nelas se arrasta vagarosamente, sem grandes novidades, Mimoso e Muqui viveram, durante todos estes anos, atribuindo uma à outra toda a sorte de maledicências, numa rixa de comadres e de bruxas e que se ora toco no assunto não é para reacendê-la, mas para contar minhas histórias.
Entre outras coisas, os mimosenses afirmam que um célebre químico, de passagem pela região, efetuou pesquisas e exarou laudo taxativo de que a água de Muqui tinha efeitos especiais sobre os homens que a tomassem, broxando-os e, o que é pior, tornando-os veados.
Grandes confusões se originaram desse boato, não só com alguns mimosenses implicantes, mas até mesmo com viajantes de passagem por aquela cidade vizinha que, ignorando aquela maledicência, pediam em seus bares por uma garrafa de água mineral. Para que não quebrassem o pau, era necessário que se comprovasse que não se tratava de mimosense quem a pedira.
Por outro lado, os muquienses (assim são chamados os nascidos em Muqui, e não muquiranas como dizem os mimosenses) diziam que o mesmo químico também passou por Mimoso e seu laudo taxativamente afirmava que os que bebessem de sua água enlouquecia, o que explicaria a grande quantidade de desajustados na cidade.
Antes de mais nada, para comprovar minha total imparcialidade nestas questões, ratifico que sou mimosense convicto, nascido, batizado, crismado e criado em Mimoso, origem de que muito me orgulho e que nunca reneguei, apesar de tanto ter sido sacaneado por meus amigos das tantas outras cidades em que vivi e por onde passei, em virtude de seu nome, além de ter que ficar dando explicações sobre ela, desconhecida, quando me perguntavam sobre minhas origens.
Por outro lado, afirmo categórica e peremptoriamente que durante algum tempo vivi em Muqui, como estudante interno de seu colégio, tempo este que me traz alegres e saudosas recordações das brigas com Travesseiro, das caças a filhotes de urubu com Chico Guiço, das bagunças que aprontamos com as bombas e rojões roubados da fábrica de fogos de artifício, tumultuando a vida dos padres, gastando toda a mesada comprando pão com doce de mamão na cantina.
Com saudade, lembro-me dos finais de semana em que nos era permitido descer até a cidade, das paqueras de suas meninas nos jardins da praça, do namoro escondido no escurinho do cinema.
Ademais, nós, mimosenses, temos que reconhecer, ao menos os de minha geração, que grande parte do que somos, do que fizemos, devemos aos excelentes professores que tivemos, muitos deles oriundos de Muqui – Humberto Capai, Venâncio, Bernardes, Nize, Teresinha, e os irmãos Paraguaçú, os quais, juntamente com Dona Elvira, Dona Ena, Dona Leonor, Dona Maria Bruzzi, Dona Cecília, Dona Laerci, Lêda Mariano, Cencinha, Amelinha, Seu Clóvis, Antonio e Carlinhos Nassur, Dr. Mandale, Agnelo, Cléber, Gilson, Lavoisier, Célio, Carlos Sampaio, Paganini, Toneloto, Gilberto e tantos outros deram- nos a estrutura de conhecimento que tivemos, superior ao de qualquer outra cidade.
Assim, com total imparcialidade, posso garantir que a água de Muqui é de excelente qualidade, não possuindo qualquer das propriedades que lhes são atribuídas, principalmente a que desce cristalina do alto da serra e abastece o colégio, onde não só eu, mas muitos outros mimosenses estudaram e dela beberam, sem sofrer qualquer efeito colateral.
Bem, mas voltando ao assunto, tenho que reconhecer que Mimoso sempre teve um número de excêntricos bem superior ao que seria normal, sem que com isto esteja reconhecendo qualquer veracidade nas afirmativas dos muquienses, já que muitos deles egressos de outras cidades e que encontraram ali a boa acolhida, fruto da hospitalidade típica de nossa terra.
Somente esta constatação pode justificar o fato de que um nosso conterrâneo que não nos interessa nominar, com o propósito de gozar uma aposentadoria precoce, aceitou a sugestão de ser internado algumas vezes em um manicômio de Vitória, conduzido por outro, seu amigo e funcionário do antigo I.N.P.S.
Trouxinha debaixo do braço, seguiram para a Capital e, como combinado, deu entrada no manicômio. Ocorre que o amigo, que também deveria providenciar a alta já no final de semana, dele se esqueceu, somente lembrando-se algumas semanas depois e obrigando-o a uma temporada forçada bem superior ao imaginado e suficiente para que, após uma bateria de injeções, comprimidos tranqüilizantes e algumas sessões de eletrochoques, passasse a fazer jus à aposentadoria.
E hoje, com a proximidade do Natal, lembro-me que, de certa feita, em uma de nossas tardes vagabundas e moleques, conseguimos reuní-los, quase que todos (Dejair, Mané Losa, Puxa-vante, Sabuco, Bolão do Vasco, etc., etc. e mais uma dezena de outros), na praça principal e com eles formando um coral que, de cima de um dos bancos os regíamos, afinadíssimos, cantando “bate o sino, pequenino, sino de Belém ... “