Na preguiça de domingo

Na preguiça de domingo

Fui levado por motivos superiores, mais conhecidos como ordens de mãe, a sair de casa numa noite de domingo, sim, por sorte eu tinha um carro a disposição, mas fui um tanto egoísta com minhas pernas ao optar ir a pé mesmo, confesso que não saio de peito aberto todos sabem da onda de violência que assola hoje nosso país, mas era a opção que mais me agradava, sentir o vento no rosto, caminhar sem a pressa corriqueira, ouvir o encontro do vento com o semáforo, ou com os paralelepípedos, só a noite nos traz essas sensações, infelizmente tudo isso ainda é um pouco ofuscado pela racionalidade que me move a estar sempre alerta no caminho, que pena não ser imortal para usufruir dos ruídos da noite, de suas idiossincrasias.

Movido pela preguiça e pelo pensamento de que era domingo eu pensei em atravessar a avenida fora da faixa que era destinada a nós pedestres, mas a racionalidade veio me lembrar que eu tinha uma moral a zelar... A preguiça venceu. Foi uma vitória fácil, visto que eu não estava só no meu ato, havia uma senhora trajada de domingo ao meu lado, em seu rosto pude ver rugas, sua face um tanto sisuda não me aflorava ousadia para tentar um diálogo, atinei que estávamos sob tensão, a qualquer momento seríamos forçados a atravessar a avenida, seja andando, correndo, tropeçando... A minha curiosidade ia aumentado para saber mais daquela senhora, perdoando seus trajes eu podia julgar que ela era polida, mas, mesmo assim, atravessaria fora da faixa, aceitei em apenas observá-la.

Estávamos nós ali, numa posição um tanto vulnerável, longe da faixa tudo era um pouco mais escuro, não havia movimento algum, o vento era mais gélido, as ações friamente calculadas de acordo com o vacilo da moralidade. Tal qual a vida, é fato que existem diversos caminhos a percorrer, os mais prudentes sempre optam pela faixa, ali não há qualquer anormalidade, seguindo a constância dos atos é possível atingir objetivos pré estabelecidos, é ter a certeza que do outro lado está tudo aquilo que lhe foi prometido e o que separa o querer do poder são alguns segundos de paciência ou um jogo de cores sincronizado.

Caminhos fora da faixa sempre são mais desafiadores, não são feitos para os inseguros, lá não há tempo certo, há a mera coincidência dos acasos ou o deslize das inconstâncias, atravessar fora da faixa requer um contentar-se com a surpresa que, muitas vezes, pode não ser positiva, mas é mais do que tudo arriscar... Aquela velha história de que só se conhece os vaga-lumes aqueles que andam na noite, sabe? Admiro os que pensam poder estudar os caminhos, mesmo sabendo que tudo é consequência de trajes, olhares, dias da semana.

A senhora ao meu lado fitava o seu horizonte naquele momento, era ele bem irradiado por luzes diversas, a maioria caminhava a largos passos em sua direção, ela não piscava, parecia saber o que fazia, sabia que ir de encontro das leis necessitava um olhar gatuno, controlar as pestanas. Não a percebia que do outro lado havia uma imensa escuridão, algo que sugava qualquer tentativa de descoberta, mas que lembrava a memória de haver uma faixa de pedestres, talvez ela soubesse de tudo isso e agora ria sub-repticiamente da minha tolice de olhar para os lados, o fato é que houve por alguns segundos um intervalo no horizonte, as luzes estavam distante o suficiente para que meus passos um tanto mais rápidos e os dela, um tanto mais “tarimbados” pudessem chegar ao destino, e me lancei.

Muitas vezes andar fora da faixa exige que se feche os olhos, o caminho pode não ser o mais bonito ou mais agradável, mas quem sabe o que nos aguarda? Deve valer a pena correr o risco, ou não, as pessoas querem mesmo a certeza, as dúvidas tornaram-se alvo de isolamento, mas e os grandes sábios, o que seriam deles sem as perguntas? Os caminhos tortuosos eram alvo dos jovens, mas é que o fracasso vem sendo tachado de doença, quanto isso eu prefiro o avant garde, acreditar que no fim da faixa há meu objetivo não é tão tentador quanto pensar que fora dela eu posso encontrar meu tropeço e eu descubra que só tropeçando é que um dia eu posso pintar minha própria faixa.

Engraçado é que chegando ao outro lado eu estava só, sim, a senhora poderia estar um pouco atrás de mim, mas não estava, um pouco de medo tomou meu pensamento, estávamos separados por vários corpos em movimento e uns jogos de luzes me faziam desconfiar da verdade, a senhora estava do outro lado, agora caminhando em direção a faixa de pedestre, eu desconfiara que ela era experiente, mas nunca pensei nessa maneira de se projetar e não saltar, vai ver que ela queria adrenalina, a dúvida, e daqui a uns anos eu faria a mesma coisa, ou mesmo se tudo isso foi uma maneira de eu pensar demais sobre o assunto e ela voltaria pra casa, bem, terminei seguindo meu caminho trocando passos com a preguiça, desviando de vaga-lumes, fora da lei demais para um domingo.

Gabriel Amorim 09/08/2015