A iniciativa de Ramon

Com o rosto quase colado no espelho do banheiro, Ramon corta as pontas dos pelos que saem de suas narinas com uma tesourinha curva para bebês. Depois conta os fios brancos da sua barba de seis dias, só para passar o tempo, cansado de não ter nada para fazer: ...dez, onze, doze, treze..., até que vê uma cicatriz na têmpora esquerda, bem pertinho do olho, e se lembra, com detalhes, de como a conseguiu.

Ia de ônibus a Belo Horizonte para desistir de um curso de Direito que iniciara havia um ano. Tinha escolhido Direito por recomendação de seus pais, dos amigos de seus pais e de outras pessoas conhecidas de seus pais que, juntos, faziam parte de uma elite deslumbrada que não enxergava um palmo diante do nariz. Mas isso não vem ao caso.

O que interessa é que Ramon tinha 19 anos, ia à capital de ônibus para desistir de um curso e, de repente, ouviu uma mulher gritar: Vagabunda! Olhou para trás e viu uma passageira se levantar e avançar sobre a trocadora, que seguia pelo corredor, desesperada. A trocadora era miúda, mirrada; a outra, um armário, e gritava como um caminhoneiro obeso faminto numa briga de trânsito. Aos gritos de vou te pegar, sua puta, alcançou a trocadora bem ao lado da poltrona de Ramon e começou a espancá-la no pescoço e nas costas com uma mão, enquanto a puxava pelos cabelos com a outra, com arrancos tão violentos que mechas de cabelo começaram a cair no chão e sobre o colo de Ramon. Vagabunda, puta e vadia eram os insultos mais suaves que saíam da sua boca.

Ramon, incomodado com aquela cena – e lembrando-se de que, segundo seu professor de Introdução ao Direito, “qualquer cidadão pode dar voz de prisão a quem quer que seja encontrado em flagrante delito” –, levantou-se e gritou, olhando para a mulher-armário: Você está presa! E mostrou sua identidade.

Ramon acordou no hospital dois dias depois, ainda vendo estrelas, com a cabeça zonza e dolorida, os olhos inchados e oito pontos na têmpora esquerda. Só conseguiu se lembrar do que tinha acontecido muito mais tarde, quando já estava em casa.

(Só para esclarecer: a trocadora era amante do motorista, que era casado com a mulher-armário).

Ramon está agora na frente do espelho, vinte anos depois, conferindo sinais e marcas do tempo, da vida... Narinas peludas, rugas, cicatrizes, pelos brancos na barba... Muitos erros e acertos, muito aprendizado...

Valeu, diz Ramon.

P.S.: O artigo 301 do Código de Processo Penal diz o seguinte: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 07/08/2015
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