50 VEZES A MESMA COISA

O carnaval só consegue manter a essência porque muda a fantasia. Reinventar também pode ser uma forma de repetir. Quando se trata de manifestações artísticas então, o conteúdo original passa a léguas! Em geral, o artista só consegue criar formas diferentes de fazer a mesma arte de sempre. São raríssimas as exceções e, como um bom neurótico de Freud, não posso ser incluído nelas. Somos mais repetidores de dramas e alegrias que pensa nossa vã filosofia!

Quer seja na literatura, teatro, cinema, ou em suas tentativas de interlocução, a repetição do “novo” só aponta na direção do antigo, dos velhos dilemas e histórias já conhecidas – velhos contornos sob novas roupagens! – Como um representante da psicologia e um adepto da teologia freudiana, posso garantir o quão isso é forte e quase independente de nós. Mesmo o não artista repete: hábitos, filmes, parcerias amorosas, erros, etc. E é exatamente o público ávido pelo de sempre que legitima o artista “inovador”.

Embora já tenha se passado um tempo desde o lançamento dos 50 tons de cinza, o assunto é sempre pertinente; Reflexões são atemporais. Como esperado, o filme foi um sucesso de bilheteria e crítica (entre os que já gostavam da história, óbvio). Junto de todo seu barulho vieram também, claro, seus opositores. Quer seja pela história em si, ou pelo erotismo, ou pela violência (na e da) relação entre os personagens principais, que consentida ou não, era bem violenta! Não é comum que romances clichês tenham esse tipo de comportamento entre seus protagonistas, o que sugere um “quê” de originalidade a história. Mas a verdade é Christian Grey e Anastacia não são inéditos em nada. Da mesma forma que a Bela do Crepúsculo não passou de uma atualização dos contos de fada de ontem, onde a mocinha aguarda seu príncipe/herói resgatá-la do mal que a cerca.

Christian e Anastacia não são diferentes. Querem contar a mesma história. A que no fim, o amor vence. Premissa que anos antes, deu corpo a história da Bela e da Fera – que também deve ter sido baseada em outra – Anastácia é a menina inocente que se apaixona por uma temida e enigmática “fera”. Um ser que vive recluso e isolado em seu império triste, cercado por servos e subordinados. Nas duas histórias, a história parece improvável demais. Suas personagens estão separadas por abismos intransponíveis e a felicidade parece um fim inatingível. E seria, se não fosse o mito do poder transformador do amor. Christian é semelhante à Fera, ambos foram acometidos a infortúnios externos que moldariam seu futuro. A Fera teria sido vítima de um feitiço que a tornou fera, ele, traumas de infância - metáfora da maldição - que justifica, entre muitas aspas, seus os hostis comportamentos futuros.

Se 50 tons de cinza foi ou não uma história de excessos, não importa, sua missão era ser uma repetição do mito do amor perfeito, nada além. Não sou contra as fantasias, pelo contrário, advogo em favor da causa, do contrário não seria escritor. São os devaneios que nos descansam da dureza da realidade. A fantasia liberta, a ilusão é que mata. Os mitos não podem ser parâmetros ou metas a serem atingidos. Sou indiferente aos tons de cinza do Sr. Grey e as demais histórias do gênero. Cada um é livre para se identificar com o que bem lhe pareça. Sou crítico apenas das imbecilidades. Momento em que a ilusão toma o lugar da fantasia e a autonomia da vida sucumbe a ideias sem fundamento. A arte é um recurso a vida, não uma fuga dela! Não existem garantias de que a Fera deixará de sê-la, nem que o amor mudará o amado.

É doce pensar que os amantes serão recompensados por seus sofrimentos ou pelo simples fato de amarem. A espera não forma merecedores. O amor é um mito assim como a felicidade. A realidade pode ser mais cruel que o pior vilão.