Assim...ou nem tanto 3
Pintar com a sombra.
A sua morte fez-me voltar aos anos oitenta. Ela tinha feito todas as medições e cálculos e vinha verificar se estava tudo como desejava para começar a montar a sua exposição na Galeria Tempo, em Lisboa. Já não me recordo da designação que teve o evento mas sei que ninguém quis patrocinar o catálogo. Loucos, diziam de nós os amigos. Tinham alguma razão porque, de facto, pintar com sombra é pouco comercial e a Galeria tinha contas a pagar. Enfim, vencidas todas as resistências, entregaram os muitos paus que, iguais em tamanho e lisura, ligavam o chão ao teto e onde a autora colou tiras de papel de cenário com cerca de meio palmo de largura e comprimentos variáveis. A exposição só podia ver-se de fora através do grande vidro da montra e da porta transparente uma vez que o espaço estava quase todo preenchido pelas colunas de madeira, as fitas de papel e os muitos ventiladores invisíveis além dos focos que haveriam, quando ligados, projetar sombras dinâmicas nas paredes brancas da Galeria. Ana Hatherly, já respeitada como professora universitária, ensaísta e poeta, protagonizava uma vanguarda polémica que marcou aqueles anos de turbulência e inovação. Era bonito o resultado visual das fitas em movimento provocado pelos ventiladores, a projeção das sombras mutantes e o clima insólito da galeria que assim deixava à porta clientes, amigos, críticos e jornalistas. Quando, depois de tudo pronto nos reunimos para um café, a conversa tocou a parte mais prática da questão que tinha força determinante. Claro que ela tinha desenhos emoldurados, poesia concreta para encaixilhar, alguns ensaios de escrita e pintura que poderia, à margem da exposição, ceder para venda apenas no escritório da Galeria. A exposição foi um sucesso memorável amplamente divulgado na imprensa escrita, na rádio e televisão. Lisboa inteira viu, discutiu, aplaudiu e contestou Ana Hatherly. Eu, em conversas de boca a orelha, vendi tudo o que havia em armazém para vender. Ficámos ricos!