L'histoire d'une fille perdue

É intrigante como a gramática tem essas palavras de grafia semelhante e nenhum parentesco semântico, mas que, se colocadas lado a lado, brotam histórias inteiras.

Numa dessas crises de insônia que me assolam especialmente todo começo de agosto, eu deixava minha mente cavalgar livre pelo limbo dos pensamentos inúteis quando percebi, por algum motivo, que falar "eu doo" pode significar duas coisas gritantemente diferentes.

DOER

DOAR

Eu escrevi os dois verbos mentalmente e notei que são antônimos não-intencionais. "Doar-se" é o oposto de "doer-se".

Quero dizer, ninguém nessa vida pode escapar da dor, mas " doer-se" é um tipo específico de rancor, mágoa, raiva ou inveja. São fardos opcionais, por mais que na maioria das vezes seja muito difícil percebê-lo enquanto estamos tomados pela angústia e parecemos cada minuto mais afogados em piche.

Todas essas moléstias nascem do medo, e ele nos prende em um círculo quase invencível. É como se nos fizesse -- ah, eu lembro quando era criança e vi um desenho animado em que a personagem estava obcecada com algum tipo de ideia viciosa, e enquanto o ruminava ela ia andando em círculos, refazendo e refazendo seus próprios passos na terra, e seus pés iam cavando o chão até que a garota se via lá no fundo de um fosso circular, alto demais para que ela pudesse sair sozinha.

O desenho parava aí de forma cômica, mas eu consigo imaginar uma continuação pra ele. A personagem, que aqui vamos chamar de V., é na verdade uma menina esperta e adorável, que tem muitos amigos. Ela então começa a chamar lá do fundo do fosso, confiante, já que sabe que sem tardar uma das pessoas que se importam com ela vai ouvir.

De fato, pouco depois alguém que passava por ali ouve o pedido de socorro e, alarmado em descobrir sua amiga, debruça-se sobre o buraco e prontamente estende a mão para V.

Mas V. estava assustada, e o medo - como vemos em afogamentos e jogos de videogame em primeira pessoa - não é um combustível para o altruísmo e o raciocínio. Quando pega a mão de seu amigo, V. a puxa tão bruscamente e com tanta força que o menino cai para dentro do fosso junto com ela.

V. fica muito triste por tê-lo trazido para essa situação, mas não sabe exatamente o que fazer. Está em pânico, pois além de ter se colocado lá embaixo, por sua estupidez e fraqueza uma pessoa que ama também está em apuros!

Ela sente agora, além de medo e tristeza, muita vergonha de si, e com isso vem a raiva. E para disfarçar esse emaranhado de emoções ruins V. passa a fugir obstinadamente do companheiro de infortúnio, dando voltas pelo fosso de modo a ficarem sempre opostos.

Outros amigos que passam tentam ajuda-la, estendendo suas mãos da borda do buraco, mas V. sente cada vez mais vergonha e isola-se lá no fundo, gritando de volta de forma raivosa. Conforme os dois acidentados perambulam, o fosso vai ficando mais e mais fundo e escuro, como se fosse feito de areia movediça.

Um belo dia - que, evidentemente, não pode ser apreciado lá dos confins do úmido buraco - V. já andou tanto no seu pequeno círculo de autoridade que se sente tremendamente exausta, então decide se encolher num canto e esperar a morte.

E sem dúvida a morte viria - cega pela dor e pela própria escuridão, V. até se esqueceu do amigo com quem divide aquele terrível panóptico, que agora possui dimensões oceânicas, até que por um milagre ele tromba com seu corpo raquítico.

Fico muito feliz em dizer que, embora seu companheiro estivesse tão lamentavelmente FODIDO quanto ela em termos práticos, ele tinha uma visão um pouco mais apurada, e sabia que não havia vergonha no que V. tão atrapalhadamente fizera. Afinal, ambos são seres humanos, e todos nós sabemos que humanos são grandes filhos da puta quando estão com medo e humilhados - ainda que essa humilhação só exista na cabeça de quem a sente.

Quando estamos com medo, nós sumimos. Nós fingimos que não nos importamos. Viramos as costas e corremos para a curva oposta do círculo que cavamos, e com nossos passos em fuga vamos cada vez mais fundo, igual naquele estúpido desenho animado. E é claro que aos poucos mesmo as melhores pessoas desistem de ficar plantadas na beirada como idiotas e decidem cuidar de suas vidas, especialmente se, como V., a vítima da própria mente sugere que os outros vão "tomar no cu". Mas a verdade é que quem está lá embaixo tem um terror mortal de derrubar outros consigo, e finge teimosamente que consegue se virar e poderá deixar seu abismo particular quando quiser.

Vou deixar o resto da história de V. com a imaginação de vocês, afinal, pra ser bem sincera, ela ainda não acabou. Mas posso garantir que não foi encontrando um veio de petróleo de tanto cavar que ela se safou, ou ela não seria mais uma reles universitária aspirante a escritora... Só tenho um palpite de que, como minha mente inquieta insone me sugeriu ligando duas palavras sem muita relação entre si, V. conseguirá sair do círculo em que vem se doendo por tanto tempo através da doação. Doando-se ao colega de sombras, aos amigos que ainda gritam seu nome quando passam ali por perto mesmo que só recebam um eco em resposta, às outras pessoas que habitam outros fossos de uma forma ou de outra, e a si mesma.

Por mais piegas que isso soe, fazer o quê? Acho que V. está ficando velha.

Valentina Caligari
Enviado por Valentina Caligari em 05/08/2015
Reeditado em 05/08/2015
Código do texto: T5335630
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