O TRICICLO

Estava no parque pedalando, parei um instante para tomar folego e refrescar-me, quando vi a alguns metros de mim uma discussão familiar que chamou minha atenção. A cena era essa: dois garotos discutiam porque um não queria emprestar sua bicicleta para o outro. Na confusão o frustrado e emburrado menino recorria à mãe buscando o seu veredito para a questão, mas a mulher por sua vez reclamava em alto e bom som para o companheiro que ele deveria comprar uma bicicleta também para o menor. Toda a discussão durou poucos minutos, mas fez de mim um crítico observador e embora não devesse especular ou julgar a vida alheia, foi impossível abster-me do pensamento: “Criança egoísta! Pudera com pais como esses que dão de tudo, exceto valores. Serão incapazes de descobrir o prazer de compartilhar”

O que quero narrar aqui é que essa lamentável cena, fez-me recordar de uma outra criança. Uma que eu conheci já há muitos anos.

O menino devia ter uns 4 anos e era o dono de um triciclo verde. O brinquedo não era desses de plástico e desmontável, mas um daqueles caros, antigos, todo de ferro e resistente como só os antigos costumavam ser. É claro que o menino adorava o brinquedo e pedalava o dia inteiro pelo grande quintal que era a extensão de seu mundo. Ele por ser ainda muito novo e pequeno não se aventurava na bicicleta azul que pertencia a irmã dois anos mais velha, portanto quando brincavam ela ia com sua bicicleta e ele seguia com seu triciclo atrás, indo da jabuticabeira até o portão, numa extensão de 100 metros, mas que era muito em sua perspectiva infantil. Assim eram as brincadeiras de bicicleta entre os irmãos até o dia em que o menino recebeu uma visita.

O visitante era visivelmente uma criança mais pobre, tinha vindo a casa acompanhado pela mãe e ele e o menino possivelmente tinham a mesma idade. Não acho que o menino era solitário, mas de fato tinha poucos coleguinhas pra brincar. A rua não era seu lugar. Por que se havia um quintal tão grande? Nisso as mães não mudam, sendo as de outrora tão precavidas e protetoras como são as de agora. Os garotos da vizinhança já mais velhos não viam graça em limitar suas aventuras e corridas a um simples quintal de terra, portanto a companhia do menino era quase que exclusivamente a irmã. Era bom para ele receber um visitante de sua idade e assim pelo período de uma tarde tornaram-se grandes amigos.

Devo lembrar aos esquecidos e adultos leitores que para uma criança o tempo tem outro sabor. Em apenas algumas horas criam a afinidade que depois como adultos já não conseguem fazer. Para crianças não há complexidades, o que importa é o tempo presente e se ambos concordam que brincar é bom porque não serem amigos?

Já na hora de ir embora, depois de terem brincado com o triciclo por uma tarde inteira veio para as mães a surpresa, quando o visitante saiu puxando o brinquedo e respondendo à questão implícita no ato:

_Ele me deu o triciclo – disse o novo amigo para a própria mãe.

_Não. Não deu. É dele. Entrega pra ele e vamos embora.

O garoto insistiu:

_Não mãe! Ele me deu. Pergunta pra ele.

Dessa vez a anfitriã da casa interveio:

_Não! Ele emprestou pra brincar, mas agora devolve pra ele.

O menino da casa sem intimidar-se respondeu:

_Eu dei sim. Pode levar.

A mulher, meio sem jeito, tentou argumentar já pensando no valor financeiro do brinquedo.

_Não filho. Você não está entendendo. Você só deu pra ele brincar aqui, mas agora seu coleguinha tá indo embora. Se você fala que tá dando pra ele o triciclo ele vai leva-lo pra casa dele e não trazer mais.

_Não, mãe! Pode dar pra ele sim. Pode levar.

As mulheres visivelmente constrangidas nada puderam fazer a não ser aceitar o gesto generoso da criança.

Sei que as crianças não sabem o valor das coisas. Não concebem o quanto os pais precisam trabalhar para comprar-lhes algum brinquedo, mas intimamente gosto de pensar que para o menino a troca era justa, afinal o outro era pobre, era legal, merecia o brinquedo e que o valor de um triciclo não era nada diante do valor de um possível novo amigo?

Ainda tenho esse menino em minha vida, embora o tempo tenha passado. Hoje ele sabe o valor do trabalho e o preço das coisas, mas graças a uma boa criação sabe muito mais: qual o valor das pessoas.

Penso que sua inata generosidade modestamente assumiu novas formas. Doa aos outros tempo, atenção, um olhar, um ouvido atento, um conselho certo, um aprendizado ou bom gesto a quem precisa.

Sei que o menino cresceu. Esse menino sou eu.

P.S: esse texto é autobiográfico. Sim eu realmente doei na minha infância um triciclo caro para uma outra criança que eu nunca mais vi.

Embora o tom tendencioso e de autopromoção (é difícil ser imparcial diante de memórias afetivas) acho que vale pela reflexão de que valores damos aos nossos filhos e que adultos iremos ter no futuro.