A CARTEIRA DO SENHOR AFONSO
Fazia calor naquele fim de dia. Abri um botão da camisa e deixei o vento bater no meu peito enquanto prosseguia caminhando, desviando dos camelôs, admirando as vitrines e tentando adivinhar o nome do carro amarelo que cruzou o sinal vermelho. O sol inclemente fez derramar outra gota de suor do meu rosto cansado. Meus calçados estão surrados de tanto que caminho pela avenida longa que parece não ter fim. De repente, enquanto a rua foi ficando deserta, de longe avistei um objeto meio escondido entre uma pedra e um monte de grama. Era uma carteira. Não pensei duas vezes antes de apanhá-la e estranhei o jeito que olhei em volta, desconfiado, como quem comete pecado. Ao redor não havia viva alma e então resolvi levar comigo a carteira marrom. Cheguei em casa ansioso para ver o mais rápido possível o que nela continha: uma cédula de vinte reais surgiu diante dos meus olhos, solitária e em perfeito estado, como se acabasse de sair de algum caixa eletrônico. Cheirava coisa nova. Logo atrás, apareceu a identidade do dono da carteira perdida: o rosto severo, enfeitado por um par de olhos meio verdes, me fitou curioso, como se perguntando quem era aquele estranho que o encarava: Afonso de tal, sobrenome pomposo que omito nesse texto no receio que ele não goste de crônicas. Afonso nasceu no dia 31 de dezembro de cinqüenta e dois. Deve ser estranho comemorar aniversário no último dia do ano. Abro mais um pouco a carteira e percorro os compartimentos, a curiosidade acelerando. Encontro moedas antigas e vários selos. Um filatelista iria adorar, mas eu nunca gostei muito de selos, preferia colecionar figurinhas, embora aquele selo com o rosto do Elvis Presley, que coloquei na palma das mãos durante vários minutos, deva ser raro e valioso. Logo depois vieram as fotos; uma criança linda dos cachos dourados, um garoto com cara de travesso e outra que mostra uma mulher debruçada numa janela. Foto antiga, em preto e branco, das margens marcadas num dourado opaco. Fiquei hipnotizado. Aquela mulher já deve ter morrido, pensei no mesmo instante que percebi a nostalgia perversa escapando de seus olhos. Tive a nítida sensação que ela sentia saudades de alguém que aguardava calada, com os braços presos no balaustre da janela, prostrada na esperança que aos poucos escorria, como alguém que delira de febre, tomada pela ânsia dos desesperados. Tapei a foto com a mão, tenho o estranho costume de absorver nostalgia. Outra foto, um senhor vestido em andrajos, da barba longa, o rosto que o chapéu quase escondia, trazia um leve sorriso de canto de boca que lembrava o semblante das crianças da foto. Seriam os pais de Afonso? O garoto com ar travesso seria ele quando criança? Por fim, no final da rebuscada, encontrei um cartão de visitas e descobri o endereço para o qual enviei na manhã do dia seguinte a carteira, intacta, com a nota de vinte, os selos, as fotos e todos os seus mistérios.