Este crime chamado beleza
Tenho uma filha adolescente com algumas características que a tornam especial: apesar da idade e do corpo já delineado, tem atitudes e preferências de uma criança com a metade de sua idade. Seus desenhos são ainda garatujas, e sua escrita, precária, não é suficiente para que se comunique com clareza. A mesma coisa se dá com a leitura. E tem grandes dificuldades em entender a abstração típica do mundo dos números. Essas características cognitivas se mesclam a uma docilidade e simpatia sem limites, um lindo sorriso que está sempre pregado no seu rosto de faces coradas, reforçado por belíssimos olhos vivos, brilhantes e escuros - tudo emoldurado por um cabelo castanho claro, liso e cintilante. Resumindo: ela é uma garota amorosa, cativante e linda.
Porém minha doce filha sofre de um mal terrível: ela é posta de lado pelos colegas de classe, com raras exceções. Ainda que conviva com crianças menores que ela, já que as de mesma idade simplesmente a ignoram. Qual adolescente hoje quer saber de desenho animado, ou de bonequinhas, ou de bichinhos de pelúcia? Elas não se conformam que alguém da idade delas possa não ligar para batom, esmalte ou bijuterias; muito menos que ache bobagem conversar sobre namorados, que não ande de bolsa e nem possua um celular. Para elas, minha filha não existe.
E ainda, para seu azar, há a beleza. Como pode uma garota tão linda não ter um QI altíssimo, não escrever com uma letra maravilhosa, não ler especialmente bem? Como pode uma bela mocinha estar tão atrasada na escola? Como essa boneca de traços delicados não sai nunca da primeira raia na piscina da academia, onde faz aulas de natação? Não pode. A idade e a beleza dela significam que ela deveria ser diferente do que é, e isso é um pecado que ninguém perdoa.
Tenho também uma amiga que tem um filho portador de síndrome de Down. Ele é especialmente doce, já que criado por um casal luminoso e feliz. Encantei-me com seus cabelinhos muito lisos, caindo suaves sobre os olhinhos levemente estrábicos; com aquele jeito simpático de nos levar pela mão ao local de sua preferência, para repartir conosco seu brinquedo ou mostrar-nos algo interessante; e com aquela doçura típica, com a qual nos abraça forte e beija gostoso, demonstrando um carinho que nos leva às lágrimas.
Estas crianças nascem como se autenticadas, pois sua face deixa claro o tipo de comportamento que se espera delas. E isso, por si só, desperta em nós uma simpatia imediata, um carinho extra por essas doces criaturas. Já sabemos que vamos ganhar um beijo, que seremos acolhidos amistosamente e que faremos um amigo sincero e cativante. Portanto, sua aparência os auxilia na aproximação - é como se estivesse escrito no seu rosto até onde podem ir, e isso nos sensibiliza e comove.
Com minha filha isso não acontece. Sua aparência dita “normal” é que se torna um verdadeiro estigma, já que quem se aproxima dela espera encontrar uma mocinha com as características de sua idade, e não uma criança pequena e ingênua. A reação é inversa: há um afastamento, pois sua aparência e seu comportamento não são condizentes. E muitos julgamentos: tantas coisas já ouvi, ainda que bem intencionadas, como sugestões para que ela fosse diferente, antes que pudesse ter a chance de falar em atraso global de desenvolvimento ou retardo mental... ‘você mima demais sua filha’, ‘mude-a de escola’, ‘você precisa estimulá-la, ‘uns tapas às vezes resolvem’... mas a pior de todas foi, ‘que pena, ela é tão linda...’. E quando falo um pouco mais sobre ela, quase que invariavelmente ouço: 'É mesmo? Não parece...'
Não se pode ter uma bela aparência se ela não vier acompanhada de perfeição. E, pensando no oposto, quantos seres não privilegiados pela beleza física, apesar de geniais, sensíveis e muito à frente de seu tempo, não são igualmente rejeitados? Algo anda errado por aí: ou se valoriza demais a beleza exterior, ignorando o conteúdo, ou se tem por certo que as pessoas belas são perfeitas no sentido mais amplo, e qualquer desvio de rota é inadmissível e, portanto, passível de rejeição. Será que virá um tempo em que teremos olhos mais atenciosos para as almas, ignorando ou minimizando o efeito das aparências?
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Obs. O nome desta crônica foi baseado num filme que vi na adolescência, "Este Crime Chamado Justiça" (In Nome Del Popolo Italiano), que discute os limites da justiça. A temática não tem muita relação, mas sim o contraste, o contrasenso. Em tempo: o filme é antigo, mas ótimo! Vale a pena.