Um caso antigo


Aos setenta e cinco de idade, atropelado por uma turma mais jovem na guerra de foice pelos defuntos do Hospital Carlos Chagas, suas comissões já não tapavam os buracos do que recebia como ex-cocheiro do Departamento de Limpeza Pública, hoje Comlurb. Sem condições físicas de disputar com os outros o telefone e o endereço da família do recém-falecido, que alguém do hospital trazia num papelzinho dobrado (tudo às ocultas e às pressas), perdia muito funeral para os concorrentes. Sequer tinha mais pulmão para o famoso grito de ataque desses belos profissionais — "Já era! Já era!" — assim que os seus informantes anunciavam a morte de um paciente.

[Era, de fato, um homenzarrão nos velhos tempos da ativa — tamancos, pernas da calça cáqui arregaçadas até as panturrilhas, camisa de meia e chapéu de palha — tocando a parelha de bois pelas ruas do bairro. Não dava um pio, não olhava para os lados, não sorria para as crianças nem cumprimentava os adultos. Em cada ponto de coleta, esperava pacientemente os dois auxiliares amontoarem o lixo na carroça e partia na direção do rio Tingüi. Uma tarde corri atrás deles para pegar uma pipa rasgada ou um pião escalavrado, não me lembro bem, e fui bombardeado com estrume seco.]

Tiro de misericórdia: julgando que fazia um favor ao pobre-diabo e a si mesmo, o dono da funerária resolveu que ele passaria a tomar conta da loja. Limpeza, cafezinho, recados telefônicos, pequenas compras para este ou aquele marmanjo. Cachorro de papa-defunto. Humilhação.

Ficou nisso quatro, cinco meses, roendo-se todo, até uma bela manhã de missa domingueira — "Porra, eu nunca vi esse cara na igreja!", dizia-se — e o último conhaque no Corredor Polonês. Com rara crueldade, ainda pensou (deve ter pensado) nos colegas de bico, na mulher ingrata, no casal de filhos que não o procurava nem para pedir dinheiro, e deixou um bilhete irritado na mesa do chefe: "Vão ter que me juntar!"

Seguiu para a estação ferroviária, e atirou-se na frente de um trem direto, atrasado.


[20.6.2007]