A GAROTA DO SÉCULO XVIII.

A GAROTA DO SÉCULO XVIII.

Sou hoje uma senhora entrando na terceira idade,neta caçula tanto da família de meu pai,quanto de minha mãe.

Como todas as famílias italianas,nas duas das quais me originei,as matriarcas e os patriarcas,acreditavam e agiam como se netos com certeza,fossem apenas os paridos pelas suas filhas mulheres,um dos motivos pelos quais,cresci muito mais próxima a família de minha mãe.

Tive tias e tios maravilhosos,pessoas honestíssimas,de caráter ilibado e amor imensurável.

Cresci sendo amada pelos mesmos, como se suas filhas legítima fosse e da mesma maneira os amei.As vezes, na minha ingenuidade infantil,chegava a pensar que gostava ainda mais deles que de meus pais,dos quais ocasionalmente levava uma surra ou uma reprimenda,o que jamais aconteceu com seus irmãos, meus tios.

Por este e outros motivos,passei talvez a maior parte de minha infância dividida entre a casa de uma tia e uma outra casa,que seria a correspondente a casa dos avós,já falecidos,onde habitavam minha tia mais velha,a mais nova e um tio,de idade intermediária entre as duas,todos solteiros.

Estas duas casas eram fontes de puro amor.

Acho que temos um lado inato e imortal com relação a mimos,pois desconheço qualquer pessoa,que não goste de ser mimada.Lá era o que acontecia.O zelo era tanto,que minhas tias se preocupavam em abrir um sabonete novo a cada banho que eu tomasse.Se tenho auto estima,devo a eles,que sempre me elogiaram e me ampararam,nas raras vezes que,dura na queda,precisei de colo.

Meu pai,extremamente autoritário e com a mentalidade da época,que educar é punir,apesar de sua inteligência e enorme generosidade com os demais,muito me bateu,por motivos irrisórios e nunca me elogiou por qualquer motivo,embora tenha me legado, grandes lições de vida; mas no cômputo geral,sua morte aos cinquenta anos,para mim foi mais alívio que dor.

Muitos anos depois,quase três décadas após sua morte,fui a seu túmulo pedir perdão, mas este seu modo de ser,modificou as regras que regem o complexo de Édipo e meu primeiro amor,foi este meu tio.

Nós nos queríamos tão bem,que ele,representante comercial,viajava demais,mas avisava sempre que estava para chegar e minha mãe,talvez mais por ele que por mim,me levava então até a última estação de trem antes da minha cidade,onde eu entrava pela janela direto para seu colo e viajava alguns minutos pendurada em seu pescoço.

Dele ganhei muitos presentes,muito amor e muitas razões para viver e para amar as pessoas.Em nossa relação nunca houve uma discórdia ou desilusão,porque sabedores da intensidade do que sentíamos um pelo outro,havia muita preocupação de ambas as partes em transformarmos cada segundo,em um momento feliz,não por nós,mas par o outro.

Obviamente,pela lei das probabilidades eu só poderia ter tido uma pessoa assim em minha vida e decepcionei-me com alguns namorados e até hoje ainda me frustro com algumas atitudes do meu marido e dos meus filhos,que nunca compreenderam a necessidade de se perguntarem diariamente,o que se pode fazer,para tornar cada dia da vida de quem você ama,mais feliz.

Enfim,não posso reclamar deles.Falta-lhes apenas uma sensibilidade mais tênue,mais sutil,que é fato natural dos tempos modernos.Mas tenho certeza que meu marido é o marido que meu tio e padrinho querido,teria escolhido para mim,se necessário fosse,pois uma parte de seus carinhos e gestos afetuosos,que dirigia a mim,ele transferiu ao meu marido,na época namorado,aliás o único que achei digno de lhe apresentar e houve reciprocidade e empatia imediata.

Hoje não o tenho mais,assim como não tenho a meus outros tios e tias,mas tenho o amor que eles deixaram,amor que tentei inutilmente transmitir a minhas irmãs e meus sobrinhos.

Minha mãe visitava pelo menos uma das suas,todos os dias;meu pai fazia com que nós,suas filhas,fossemos tomar a benção de sua mãe,pela manhã e à noite.

Apenas a convivência cria laços...

Minhas irmãs vivem suas vidas e minhas sobrinhas as delas,e suas vidas se entrelaçam,enquanto a minha se distancia.

Creio que na vida delas existe mais rivalidade que irmandade,mais disputa pela liderança que pela sabedoria,mais compadecimento de si próprias,que orgulho de seus feitos,mais orgulho de si que humildade,mais inveja que felicidade.

Minha casa na infância era puro gelo,que acredito que elas tenham levado para seus lares e seus corações.

Não compreendo não existir respeito nem proteção dos mais velhos para os mais novos,interesse em ver o outro subir na vida,estar bem e feliz,vontade de ver o outro,estar sempre em contato e talvez a falta de convivência entre nós esteja matando,como erva daninha, o amor.Ou nossas diferenças de pensar,agir e crer.

Como muito pouco morei nesta casa fria e o gelo que cheguei a sentir,minhas lágrimas derreteram,jamais carreguei esta carga.

Por outro lado,elas viveram em suas respectivas épocas e vem acompanhando a modernidade.Eu não.

Apenas venho acompanhando a evolução.

Seus amores tinham suas idades e suas impetuosidades;os meus grandiosidade e sabedoria de séculos atrás.

Eu sou do século passado;os tios e tias que tanto amei,do século anterior,e eles receberam a educação e os princípios de meus avós,nascidos no século XVIII.

Esta foi minha herança. A verdade,a lealdade e a honra.

Dói-me as vezes ser diferente daqueles que deveriam ser meus iguais,pois isto nos afasta,mas nunca me arrependerei de ser uma pessoa com quem os outros podem contar,porque sabem que nunca os trairei;que porto-me de maneira a ser exemplo para meus filhos;e que não precisaria assinar nada,pois sempre cumpro com minha palavra;a caneta eu uso para escrever minhas memórias...

Em pleno século XXI, sinto uma saudade imensa do século XVIII.De lá vieram meus princípios, de lá vieram meus amores,de lá eu vim.

Saudade de mim.(eu)