Lendo '2666'

Roberto Bolaño não viveu para ver seu livro '2666' publicado e, talvez, numa tarde chuvosa em Blanes, na Espanha, onde vivia com a mulher e os filhos, segurá-lo junto ao peito e pensar que certamente seria o seu último, porque, mesmo com a esperança de um transplante, ele sabia que seu fígado não aguentaria mais tempo. Morreu sem vê-lo publicado, mas tranquilo, porque deixara instruções a seu editor, Jorge Herralde, sobre sua publicação, que deveria ser em cinco volumes, um por ano, para garantir o futuro econômico dos filhos. Pois Bolaño, apesar da grande sensação causada pelo seu livro 'Os detetives selvagens', publicado em 1998, estava longe de ser um best-seller; e como não tinha nascido em berço de ouro, e privilegiara sua vocação de escritor ao invés de se acabar numa carreira maçante que não tinha nada a ver com ele, ganhava apenas o suficiente (e às vezes nem isso) para sustentar a família. Morreu após ter se dedicado loucamente à escrita de um romance de quase mil páginas que, apesar das instruções dadas ao editor, foi publicado em um único volume (com o aval dos herdeiros), e que hoje é um dos livros mais cultuados da literatura mundial, embora pouco conhecido: '2666'.

Meu primeiro contato com Bolaño foi lendo 'Os detetives selvagens'. Experiência fantástica, mas difícil, porque, enquanto eu o lia, nada fora dele me interessava: trabalho, comida, família, atividade física, higiene, nada. Só queria estar dentro do livro, acompanhando Arturo Belano e Ulises Lima em sua busca selvagem pela escritora e poeta Cesárea Tinajero, desaparecida no México logo após a Revolução. Selvagem porque eles se entregaram totalmente à sua paixão pela literatura, à poesia, e enfrentaram tudo que tinham que enfrentar em suas andanças pelo mundo, desesperadamente.

E que surpresa agradável eu tive ao começar '2666' e ver que nele também há uma busca desenfreada por um escritor desaparecido, com o qual pouquíssimas pessoas tiveram contato: o alemão Benno von Archimboldi. Quatro intelectuais (uma inglesa, um francês, um italiano e um espanhol), especialistas em literatura alemã, tornam-se amigos e saem à procura do escritor, indo até o México, onde supostamente ele foi visto pela última vez. Li 120 páginas até agora. Três dos quatro “detetives” já se encontram no México, vivendo experiências estranhíssimas enquanto procuram o alemão. Estão agora a caminho de Santa Teresa, na fronteira com os Estados Unidos, onde vêm ocorrendo vários assassinatos de mulheres... Ainda não sei por que o livro se chama '2666'.

Por que eu gosto tanto de ler Bolaño? Primeiro, porque ele escrevia sobre livros, escritores desesperados, jovens apaixonados por literatura, e isso me toca profundamente, porque eu também sou apaixonado por literatura, e gosto muito de escrever. Segundo, porque seus livros me transportam para um mundo fantástico, estranho, do qual eu não tenho vontade de sair. Sinto como se a vida de seus personagens fosse a vida que eu deveria estar vivendo, a que mais combina comigo, mas que, por algum erro de percurso, não me aconteceu. Então eu vivo aquela fantasia com enorme prazer, e, olhando para o mundo real, corrijo meu trajeto, meus planos, abro-me mais aos sonhos e, por isso, sou mais feliz.

Quem sabe um dia eu me torne um detetive selvagem...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 29/07/2015
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