Pedras Coloridas
Eu não devia ter recusado a carona. Talvez devesse ter recusado o convite, não a carona. O sangue não estava mais escorrendo e a dor já havia diminuído bastante, mas eu ainda estava muito tonto. Pior do que o mal estar, só a vergonha. Depois de mais alguns passos meu corpo começou a pesar insuportavelmente. Apoiei-me em uma parede. Tentei recordar o que havia ocorrido na festa, mas foi infrutífero. Algum tempo depois, caminhar deixou de ser um desafio.
Quando movi o pé, chutei alguma coisa. Olhei para baixo e tudo que vi foi um cobertor. Movi-o com os pés e por baixo dele dormia uma criança. Um menino de rua. Aliás, mais um menino de rua, afinal aquele não foi o primeiro nem o ultimo que encontrei nas nove quadras que separavam o salão de minha casa. Sua pele, apesar de queimada pelo sol, era alva e os cabelos castanhos. Aparentava onze ou doze. Enfim, era só mais um garoto; não fosse pelo objeto em suas mãos, eu teria gasto poucos segundos observando-o.
O menino segurava-o com muita firmeza, de modo que eu só enxergava uma parte da bugiganga. A forma retangular e a cor acinzentada criavam uma expectativa. Eu devia tê-lo deixado quieto. Estava frio e a calçada era acidentada, conseguir dormir nestas condições era quase uma epopeia. No entanto, não resisti à comichão da curiosidade.
Tomei-lhe o objeto, felizmente ele não despertou. Confirmando minha expectativa o que ele tinha em mãos era realmente um cartucho de Super Nintendo. Para minha surpresa, este se chamava Super Metroid. Super Metroid, quem diria. A mais épica aventura da lendária Samus Aran, considerada por muitos não só um marco da exploração gradual não linear, mas um dos maiores ícones da história dos videogames.
Surgiu então a indagação “O que eu faço?”. Aquela fita é uma verdadeira relíquia e há quase seis anos eu a buscava. Deveria devolver àquele que é o provável dono? Deveria simplesmente partir? Deveria partir deixando nos bolsos do garoto duzentos reais, valor estipulado para o cartucho?
Não cheguei à conclusão alguma e comecei a perguntar-me a razão pela qual o garoto possuía o jogo. Suas roupas estavam sujas, mas não pareciam ser velhas. Talvez os pavers sejam sua cama há pouco tempo e a fita seja uma lembrança dos bons tempos. Um presente dos pais talvez. Não fosse isto, por que ele mantê-la-ia? Várias lojas pagariam bem pelo jogo, com o dinheiro ele poderia comprar comida, roupas e até uma bola. Em seu estado, o cartucho era tão útil quanto uma pérola para uma galinha.
Terminei por devolver a fita ao menino. Para muitos aquele amontoado de plástico e metais pesados valeria muito mais que a vida daquele pequeno ser humano. Toda aquela reflexão fez-me sentir estranho. Será que os Houyhnhm sentiam-se assim observando as pedras coloridas dos Yahoos? Não, o que eu senti foi o mesmo que Gulliver; estava ciente de que as gemas eram inúteis, mas mesmo assim não conseguia desprender-me dos valores que representavam.