MEMÓRIAS ( 4 )


Lembranças a respeito de meu avô não são claras. Ele era alto, magro, tinha o rosto fino, cabelos lisos, embranquecidos. Da casa onde ele morava, ao lado da olaria, resta uma lembrança obscura, sem contornos, com se fora mal iluminada. Creio que era baixa, as janelas pequenas. Os móveis eram simples, toscos. Mesmo assim, ir visitá-lo era sempre uma alegria. O sítio era contornado por um riacho ligeiro, de águas claras, peixinhos. Na direção da entrada havia uma ponte, pequena, de madeira. Perto dela, uma escada cavada no barranco, com um recuo embaixo, alargando a margem.Lá embaixo, uma bacia, uma tina, água e sabão; festa.Enquanto minha prima lavava roupas, eu esfregava meias, sempre o que me cabia...
Meu interesse principal, porém era outro. depois da poeira fina, minha grande atração era pelo saibro, pelo barro, pela argila. assim, enquanto todos conversavam lá dentro, tomavam café, a diversão fora, ao sol, era minha: mexia e remexia nos tijolos, virava, desenformava, enchia os moldes, alisava com as mãos, pisava no barro, mas curiosamente não me lembro de punições. Será que meu avô me defendia?
Como um nada, percebi que ele estava na nossa casa, nós não íamos mais ao sítio. Minhas tias vinham, uma a uma e paravam mais tempo com minha mãe do que o costume. Sobre o telhado do galinheiro amontoavam-se ampolas imensas. Seria pelo meu tamanho, ou seria real? Da cadeira onde ele sempre ficava, podia ver quando eu ia beber água, na cozinha. Era água de poço, guardada num caldeirão grande de alumínio com tampa, sempre brilhante. Eu pegava a água com uma caneca e ele ficava vigiando. Nem sonhar em beber antes de recolocar a tampa. Ele viera da cidade sobre as águas, ensinava a cuidar daquela que beberíamos.
Um dia nos puseram uma roupa de passeio, nos deram um lencinho e nos disseram para ficar fora, perto do portão. As pessoas foram chegando. Lembrei-me das histórias do Vento Norte, da menina no portão, bem arrumada, à qual um porquinho pedia umas moedas. Evocava aquela tristeza para poder chorar, usar o lencinho mas os olhinhos estavam secos. Sobrava apenas a tristeza.
Anos mais tarde escrevi um poema chamado Heranças. Algumas pessoas entendem que ele fala sobre meu avô, mas não. Nin-guém percebe que está no masculino. Compreendo porque. Para mim também, essa foi a primeira compreensão da partida. Isso é forte o suficiente para gerar confusão! Tenho um tijolo guardado onde se lê:A * S (Azzi, Stefano). De quê me serve? Quiçá para lembrar de onde viemos e para onde vamos.
(E provavelmente, de onde vem minha grande ligação com o Repente!)