A cidade, o tempo e a vida

A cidade me engole com seus carros e imensos prédios. Não diviso, nem antevejo a linha imaginaria que um dia me serviu de faixa. Atravesso sem que o medo me impeça de prosseguir; preciso chegar do outro lado; preciso continuar disputando espaços com gente apressada e carros turbinados. Preciso chegar a tempo e bater o ponto para que a possibilidade de realizar meus sonhos se cristalize. Quem sabe, no próximo mês, o salário não acabe antes do décimo dia e as contas não se avolumam sobre a mesa como num arquivo.

Um casal passa por mim. O homem me parece cansado. Seu andar, embora, sua pele sugira perto dos 40, se assemelha com quem já vivera mais de 60. É demasiado lento. Observa-lo, ainda que por pouquíssimo tempo, desperta em mim uma inquietude, e pensamentos que nunca havia experimentado, de repente, me invadem. Preciso apressar meus passos; preciso acelerar para bater o ponto, mas aquela imagem, sem que eu conseguisse evitar, se apossa de mim. E, a noção do tempo é tão arrebatadora, que já não sei se quero chegar e bater o ponto. Não tenho mais a certeza de que a felicidade está num pote do outro lado do arco-íris. Nem vejo mais arco-íris; a poluição tornou a cidade cinza e fria, prédios, cada vez mais altos, distanciam as pessoas do chão e as colocam nas alturas como se quisessem chegar ao céu.

Naquele dia não bati o ponto. Tomado daquela imagem, me dei conta que o tempo não me impõe nada; eu, como todo ser que vive na cidade, fui educado a digladiar com o tempo com se fosse possível vence-lo. O tempo existe mesmo que eu não exista mais; ele me vence mesmo antes de eu pretender enfrentá-lo. Nessa batalha meu fim está consignado; só me resta esperar. Mesmo que eu tente resistir, não posso vence-lo.

Naquele dia não bati o ponto.

Visitei museu, fui ao cinema; li num banco de praça e vi crianças indo à escola. Essa cena particularmente me impôs à volta num tempo que já nem lembrava que vivera. O livro que lia, como se não existisse em minhas mãos, não fez peso suficiente para que eu sentisse o quão volumoso era. Eu, tomado daquele mínimo tempo de nostalgia, nunca havia me dado conta das minhas estripulias, nunca parara para pensar que aqueles tinham sido meus mais felizes dias; eu brincava, eu ria das coisas mais sem sentido, mais sem conexão com a seriedade que se exige hoje das crianças criadas para serem campeões.

Foi nesse dia que eu percebi que muitos dos meus amigos não existiam mais. Muitos sucumbiram tomados por escolhas momentâneas. Outros, porém, e isso me alegra, seguiram seus sonhos. Nenhum ficou rico, nenhum anda de jatinho e nem tem apartamentos nas principais capitais do mundo, mas, esses, eu sei, são tão felizes que se pode dizer que encontraram seu pote de ouro, que o arco-íris existe.

Hoje a cidade que, antes de ver a imagem do homem que caminhava a passos lentos, me engolia sem que eu me desse conta, sem que eu percebesse que meu tempo não é o tempo da cidade, hoje, especialmente hoje, ela me parece a joia mais linda. O tempo da pressa não se imporá; o tempo, depois daquela imagem do homem caminhando lentamente, não se deitará sobre mim.

Viverei meus dias, ou que deles me resta, apoiado, não mais em cumprir tarefas com as quais não me identifico, mas, dedicado a entender que se não posso vencer o tempo e a cidade que me cerca, com seus prédios e carros turbinados, ao menos não desperdiçarei noites de sono em contas que não fecham.