COMO ANDAR DE BICICLETA

Uma das coisas mais legais que eu já fiz na vida foi ajudar a montar um circo. Literalmente. Bater estacas, esticar lona, montar arquibancada, Globo da Morte e mais uma porção de serviços ingratos e pesados. Não é um trabalho simples e nem um pouco convidativo, mas com certeza, uma das melhores experiências que eu já vivi. Houve quem me dissesse que isso era coisa de gente estranha, até o pessoal do circo me olhou meio diferente. Eu se visse alguém fazendo o mesmo, diria o mesmo! Uma pessoa que se oferece voluntariamente para um trabalho pesado e hostil merece, sem sombra de dúvida, ser vista pela perspectiva da esquisitice. O que em momento algum eu digo com desdém ou de forma jocosa, pelo contrário, são nossos hábitos excêntricos que dão sentido à vida; loucuras que a gente faz de graça a troco de coisa alguma.

Mas infelizmente, montar lona foi um prazer vivido uma única vez. Tenho grande apreço pela arte circense e conhecer o circo por dentro, quando as caras não estão pintadas e as luzes apagadas foi sem dúvida uma experiência única. O que não foi só uma vez, mas sempre foi tão bom quanto, era andar de bicicleta. E curiosamente essas foram duas coisas que me foram apresentadas pelo meu pai, ambas quando eu ainda era criança e devia estar lá pelos sete. Certamente ele não imaginava a relação de amor e fidelidade que eu desenvolveria a partir dali. Do circo eu acredito que ele não tenha se arrependido, mas da bicicleta, eu não tenho dúvida. Nenhum pai se sentiria bem em ver que presenteou o filho com algo que frequentemente levava-o ao chão. Aos olhos do meu pai minha bicicleta era uma máquina de dar rasteiras. Depois de ver o que a bicicleta se tornou pra mim e principalmente o que ela fazia comigo, meu pai não tirou ela de mim, mas fez o que pôde para tentar acabar com essa relação. Minha bicicleta foi meu primeiro amor e uma nora indesejada. Que minha namorada não me ouça, mas meu coração nunca bateu assim por ninguém! Assim como nenhuma relação foi mais dolorosa que essa. Até aprender a andar foram muitas quedas, depois que passei do rito de passagem de tirar as rodinhas, foram outras, que com certeza doeram muito mais. Já quebrei osso, ralei os joelhos, furei a cabeça e do resto perdi a conta. A carnificina foi completa, e o histórico disso segue presente em mim, nas cicatrizes de um tempo que eu daria tudo para ter de volta. Sentiria todas as dores se fosse preciso, para poder sentir também a emoção de minhas conquistas inúteis. Meu jeito de andar era transgressor, meu desafio era andar de uma roda só, pular a calçada, saltar por cima de alguma rampa, enfim, o impensável, a rebeldia, o improviso. No início isso me custou hematomas e dores intermináveis, com o tempo, virou bronca e castigo. Meu pai passou a odiar minha bicicleta! Ainda que fosse com as duas rodas no chão e todo puritanismo de um passeio no parque, ela gostava mais dela encostada e totalmente invalida. Como ficou por muito tempo, por causa de um simples pneu furado. Essa passou a ser estratégia, quando surgia a necessidade de algum reparo, ele se negava a fazê-lo. Nunca duvidei que fossem boas suas intenções, só não eram as minhas. Eu queria o desafio, o risco de poder me arrebentar a troco de nada. Aliás, em busca de uma sensação rápida e fugaz. Nada além. O amante fiel vive até com a migalha. E eu era desses, eu queria o risco, por mínimo que fosse. O medo inevitável e o poder da escolha; pula ou não pula? A bicicleta era minha droga, meu vício incompreendido e meu pecado.

Depois de um tempo eu passei a andar escondido do meu pai, ela não podia nem sonhar em saber o que eu já havia aprendido. A coragem me trouxe a possibilidade da experiência, a repetição o domínio, mas a excelência chegou foi com o limite. Sem falsa modéstia eu digo que fui bom com a magrela. Fui bom em andar de uma roda só, em curvar no quase, frear por último, adiar o inevitável. E se não fosse pelo meu pai, eu não sei se chegaria a tanto. Foi por causa dele, e não a pesar dele, que eu tive de ser cada vez melhor. Depois de se recusar a conserta-lá, eu tive de me superar e não deixar que minha bicicleta quebrasse. Do contrário eu teria de parar com tudo e andar de forma disciplinada e segura; pedaladas que eu sempre achei sem sentido.

Os limites tem a propriedade da convocação, ou você melhora ou desiste. Entre duas rodas só existe uma expectativa, a da queda. O cauteloso posterga o asfalto, o insensato beija. Com o tempo e a prática eu diminui as quedas, e das poucas a maioria eu caía em pé, igual gato. Ai de mim se chegasse em casa machucado! Sem contar que minha bicicleta envelheceu e suas peças já não eram mais as mesmas, o conjunto já não suportava mais toda aquela demanda de adrenalina; não como antes. Minha bicicleta se tornou uma bomba, uma granada com o pino frouxo. A qualquer momento ela poderia se despedaçar, cada empinada ou salto poderia ser o último. Embora eu conhecesse cada barulho daquela orquestra de metal, eu nunca saberia qual rangido seria o derradeiro. Eu retardei o quanto pude, ao longo de muito tempo; o que faltou nela sobrou em nós.

Pobre foi do meu pai que errou duas vezes. Não devia ter me dado aquela bicicleta e nem tentado tirar ela de mim.

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