Iluminação

Parecia fazer silêncio, mas não fazia. Percebeu isso quando, subitamente, os barulhos do condicionador de ar, da geladeira e do computador cessaram, e o novo silêncio por baixo desse causou-lhe um susto.

Passando o susto, deu-se conta de que lá fora havia ainda os carros, as sirenes, as vozes. Barulhos que estavam camuflados pelo silêncio da casa, e que, sem dúvida, não seriam ainda a última instância da quietude, como a princípio lhe pareceu, no momento do apagão.

Porque se esses barulhos da rua também cessassem, ainda restariam os sons dos animais, do vento, dos movimentos imperceptíveis de objetos no ambiente... Mas, daí, se esses últimos também calassem, aí sim, quem sabe, chegaria o silêncio maior, absoluto, sideral. Mas isso parecia muito distante, muito distante da vida no planeta. E mesmo pensando holisticamente, por todo o espaço cósmico, explosões, e toda ordem de movimentos microscópicos, sonoros e táteis, não deixariam de ocorrer.

E indo, talvez, mais fundo nessa ampliação geral, talvez só a morte, a última instância, fosse o maior silêncio de todos. Só que mesmo o cadáver sofre a ação da decomposição, que, silenciosa ou não, escandaliza. E ainda que completamente desfeito os restos da vida, as suas partes minúsculas não deixam de ser espalhadas, física ou simbolicamente, pelo funcionamento do universo barulhento.

Por isso, a camada de silêncio que restou, após o repentino apagão da energia elétrica, ainda era de ordem menor. Mesmo assim, não deixou de dar-lhe susto, sobretudo pela forte impressão fúnebre que o momento lhe transmitiu.

Sobrou-lhe, de todo o escuro, uma luz azul. Era do celular. Ainda restava-lhe alguma carga na bateria. Foi, então, em sua direção, pegou-o e lembrou que não havia recarregado neste dia ainda. Restava-lhe pouca energia. Ficou, então, pensando que ele iria se apagar a qualquer momento. E que se recebesse alguma ligação, certamente não duraria tempo suficiente. Ficou mudo, olhando para o aparelho retangular. Algo fez barulho na cozinha. Pensou duas vezes antes de ir ver e levou o celular consigo.

Não havia nada. Iluminou partes da cozinha com aquela tela azulada e tudo lhe parecia em ordem. Voltou tenso para o quarto, sentou-se na cama, deitou-se e deixou o celular bem perto, ao lado. A bateria estava realmente fraca, prestes a cessar de vez. A cidade estava escura. Não pensou em sair. Não só pela insegurança, mas porque o mundo estava ali, ao seu lado, em uma lista de contatos e de entretenimento à mão; embora, se ousasse usar, não daria tempo suficiente para nada.

A expectativa o mantinha acordado, mas mesmo ela era inútil. Depois de alguns poucos minutos, em um gesto automático, ligou a tela para conferir as horas. Elas apareceram em números grandes e o aparelho logo ficou escuro. Apagou-se. Por um instante, manteve-o ainda na mão. Depois acabou soltando-o, sem deixar de olhá-lo por dentro da escuridão. Estava só. Completamente só. Olhou de longe o espectro do computador desligado. A máquina parecia-lhe estar de olhos fechados, a dormir, silenciosa e friamente. Tudo estava desligado.

Fechou os olhos, a divagar. Aos poucos, os seus pensamentos se multiplicaram, até seguir uma linha. Pensava nas pessoas e nas imagens delas. Chegou a sorrir sozinho. Foi quase pegando no sono, de cansaço, quando barulhos eletrônicos apitaram quase que em uníssono. O condicionador de ar, a geladeira, o computador e todas as luzes da casa religaram a todo vapor, de súbito, como se fossem um desfibrilador gigante, envolvendo-o inteiramente, feito uma grande mão recolhendo-o por completo, a erguê-lo de volta ao alto iluminado, a ver muitas outras luzes outra vez.

Voltaram, então, os barulhos, que eram o seu silêncio anterior ao susto. Amou-os, quase que os abraçou. Andou com desenvoltura e alívio por cima das camadas inferiores, que agora ignorava outra vez, mas que sempre o espreitariam: aquela dos carros, do vento, dos animais, do vazio sideral e da morte. Pegou algo na geladeira e foi sentar-se na cadeira em frente ao computador; desta vez ligando também a TV. Estava tudo conectado. Sentiu-se confortável outra vez. Respirou. Lembrou e foi recarregar o celular, no ritmo de quem sentiu voltar a funcionar tudo outra vez, de corrente sanguínea desbloqueada... Lá fora e em sua mente estava tudo disponível, tudo iluminado e vivo novamente.