O dia dos macacos.
Há muito tempo, aceitei um convite do caseiro da chácara vizinha à nossa, para uma caçada nos arredores. Era uma tarde de domingo e na falta de qualquer outra coisa pra fazer, aceitei!
Passadas três ou quatro horas, depois de nos aventurarmos na selva bruta, às proximidades do Rio Madeira, já com fome e sede e sem ter visto ou ouvido qualquer indício de qualquer ser vivo maior que um passarinho, finalizamos a caçada e batemos em retirada. Já saíamos da floresta quando nos deparamos com um bando de macacos, desses que costumam aparecer nas margens das florestas fazendo algazarra e fugindo em seguida. Acho que são os tais dos "Zog-Zog". O meu guia então jogou a espingarda na minha mão e instigou "É tua vez! Vamos levar pelo menos um macaco, pra gente fazer no leite da castanha".
Levado mais pelo susto e pelo inusitado do momento mirei na direção do bando e fique esperando um melhor enquadramento ao mesmo tempo que tentava digerir a sugestão gastronômica daquele rude amazônida. Não que nunca tivesse degustado alguma "caça", mas "macaco no leite da castanha", àquela época já parecia muito mais coisa do passado que uma real probabilidade. Ainda se fosse paca, tatu, cutia, anta, queixada, que têm real aproveitamento de proteínas, até não seria de total mal gosto. Mas macaco e por cima, daquela espécie, não tem nada a oferecer, a não ser muito osso, pele e pelo... Mas o tempo urgia e aquele precioso segundo era de pura adrenalina, não havia lugar para conjecturas. Ainda assim, elas continuaram a fluir.
Macaco, quanto eu era criança lembro-me ter comido uma vez. Mas já fazia tanto tempo... E alem do mais, era um bicho enorme. Era caça mesmo, muito apreciada à época. Um vizinho fora o patrocinador. Minha mãe, acho que não comeu... Mas eu, menino... "Menino come até cobra", era o ditado. Não teria coragem de repetir o prato, nem mesmo melhorado (no leite de castanha).
Veio-me então a razão: Era a primeira "caça" que aparecia... então questionei ao junto ao meu amigo: "Como minha vez, se você sequer deu um tiro?". "Mas a vez é sua", respondeu,"O calouro é quem começa. E cuida senão os bichos vão embora!". Discutir também não traria melhoras ao quadro que se instalava... Melhor seria apelar para a diplomacia (ainda que eu estivesse, literalmente, armado). Até um macaco maior que a maioria dos outros surgiu de repente em uma árvore não muito alta, para complicar mais ainda... Agora o momento era de ação. Ato contínuo o meu parceiro sussurra "É esse aí. Não vai errar!".
O décimo segundo acabava de começar. Ele era de tomada de decisões... Ali, naquele momento, a natureza conspirava contra o pobre animal... Árvore baixa, ele todo fogoso e meu parceiro me cobrando um disparo... Pronto, me decidi. Quando já me preparava para o disparo fatal o olhar do macaco cruzou com o meu. Ai aconteceu o momento mágico. Para ele pode ter sido um simples gesto de desespero, para mim foi um atestado de um crime eminente. Fiquei estático diante da atitude daquele símio. "Vamos! Atira logo!", insistia meu amigo. E como naqueles filmes onde um anjo e um demônio ficam infernizando a consciência do protagonista, parecia que o olhar fixo do macaco me dizia: "Não vai pela cabeça dele" e mais uma vez mil pensamentos fluiram diante de mim. Até mesmo cheguei a lembrar da história da evolução humana. Sopesadas as relatividades do momento em que macaco e homem deixaram de ser os mesmos seres, comer macaco me parecia ainda um gesto canibalesco. Exatamente essa palavra me veio a mente e até questionei também sua existência... O tal macaco parecia abusar da minha semi-consciência e me dizia (naquele olhar) zombeteiramente: "Vai encarar 'macaco no leite da castanha'? Eca!" Meu braço ficara enorme e sua extremidade agora finalizada por um tubo de ferro não se movia. Felizmente meu dedo também não. E infortunadamente o Macaco idem. Numa outra dimensão ainda mais abstrata ali estava eu esperando que um pintor terminasse o meu retrato, após o que me autorizaria um pequeno movimento. "Atira!", ordenou meu algoz, quer dizer,não exatamente o meu... mais um pouco também.
Fortuitamente me veio a lembrança de quando tentei, sob os escritos de Lobsang Rampa, fazer minha primeira viagem astral. Estava tudo certo, mas no momento "x", me perguntei "e depois? Como faço pra voltar?", Havia muita semelhança entre os dois momentos. Tirar a vida de um outro ser é uma viagem, e, talvez, sem volta. Mas aquela fora minha primeira e única... e, de certa forma, eu amargava o insucesso, o fracasso após tanto tempo de treino... Então dessa vez talvez se fosse mais ativo...
Foi então que deixei que coisas acontecessem às suas próprias sortes. Ou quase! Lentamente puxei o gatilho e o estouro ecoou pela mata cálida. Para minha alegria a mesma força que me fez puxar o gatilho também me fez desviar "acertadamente" a direção daquela fatal arma. No fundo, no fundo, o desvio fora intencional. A felicidade não foi apenas minha! O macaco também aproveitou o momento e fugiu do nosso campo visual. Uma pequena falha tática: Eu nuca havia atirado para matar antes. Talvez isso tenha sido o principal motivo do erro de pontaria.
"Não tem problema, amanhã nós voltamos e matamos uns três desses... ", Resmungou o meu parceiro numa visível ironia. . Acenei com a cabeça numa vã resposta positiva...
Aquela foi minha primeira experiência predatória. Alguns anos depois ainda me aventurei em pescaria com amigos em vários locais e ocasiões. Mas caçar, aquela foi a última vez, aliás, minha única e malsucedida vez. Ou talvez bem sucedida... "Macacos me mordam!", aquele era o dia deles...