A PORTA

Naquele dia Ramon acordou às cinco da manhã, tirou o pijama e foi nu para o quintal. Lá sentiu o cheiro doce de terra e mato molhados de orvalho; olhou para o céu, respirou fundo e abriu os braços, entregando-se ao amanhecer da vida que o chamava. Voltou ao quarto, vestiu uma roupa e saiu para a rua, sem pressa. Saiu para passar o dia fora, sozinho. Por descuido não avisou a mulher, que dormia. Nem deixou bilhete.

Era sua primeira quinta-feira de folga. Pagou caro por esse tempo, mas não se arrependeu (dinheiro não é tudo na vida). Liberdade... Um dia a mais por semana para estudar, ler, escrever, sonhar... Uma pequena porta que se abria no fundo de um imenso quadro (como em 'As Meninas', de Velásquez): uma fresta de luz numa parede cheia de sombras. Caminhos. Para onde, Ramon ainda não sabia.

Por uma hora andou sem rumo pela cidade. Às seis e meia entrou numa padaria e tomou um café com pão e queijo. Ninguém o notou. Também não foi visto na entrada do colégio onde estudou dos dez aos quatorze anos (a época mais triste da sua vida). Os estudantes começavam a chegar, com suas mochilas pesadas, muitos já preocupados com o vestibular e as demandas do mercado...

Às sete e meia sua mulher ligou. Ramon se desculpou pelo descuido e pediu a ela que cuidasse das crianças e as despachasse para a escola, pois ele precisava daquele dia só para si. Ela entendeu. Assim como tinha entendido a redução de oito horas na sua carga semanal de trabalho (com proporcional redução salarial). Para ele seria um tempo de preparação para um futuro melhor, mais feliz. Não era preguiça. Ela sabia disso.

Com mais tempo livre, Ramon poderia voltar para o inglês. Voltaria à pesquisa (História, Literatura, etc.). Escreveria mais. Visitaria museus, arquivos, bibliotecas, livrarias. Estudaria mais. Teria mais tempo para ler, criar... Queria valorizar o que ele mais gostava de fazer, suas habilidades mais espontâneas, que ultimamente vinham sendo pouco utilizadas. Já era hora.

Andava sem rumo pela cidade, observando as pessoas, o movimento frenético de homens e mulheres buscando, buscando, buscando... Ninguém o viu quando entrou numa feira de produtos orgânicos e comprou duas mexericas. Nem quando parou numa praça para chupá-las, embaixo de um ipê roxo todo florido. Ninguém o viu no cemitério, conversando com os mortos. Nem no restaurante da Regina, almoçando arroz, feijão, peixe e salada. Também não foi notado quando se sentou no banco de outra praça, tirou um livro da mochila e leu por quase uma hora.

Ninguém via Ramon. Ninguém o conhecia. Reservado e cheio de arestas, ele nunca conseguira se ajustar bem à maquinaria do sistema. Não tinha contatos, networking, nada. Representava seu papel sempre na beirada do palco, quase caindo, ou na sombra, distante. Não se via como parafuso, embora fosse um; bambo, é verdade, mas mesmo assim útil.

No final do expediente, ao registrar seu ponto, Ramon deixava para traz seu uniforme metálico de parafuso mal ajustado e criava asas, que ele batia com prazer. Mas não voava longe. Não tinha como. (No quadro em que atuava era tudo muito escuro, apertado, perigoso).

Oito horas a menos de trabalho por semana, no entanto, abriram-lhe uma porta de luz na escuridão. Não a via ainda como ponto de fuga, mas como fonte de vida, de alegria, de renovação...

No futuro... Quem sabe?

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 21/07/2015
Código do texto: T5319268
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