NATUREZA MORTA
 
               Se eu fosse pintora, pintaria uma cena que vi num sonho. Desses sonhos tão reais e perfeitos que quando a gente acorda custa a acreditar – e lamenta – que não tenha sido real. (Será que não foi real?). 
            Mas não foi exatamente uma cena, pois não havia personagens e movimento e uma história sendo contada. Havia somente o cenário e eu, observando tudo com tamanha atenção que me lembro perfeitamente dos detalhes e até do cheiro que pairava no ambiente, fazendo parte dele.
                   Era uma espaçosa cozinha antiga, de casa grande de fazenda. Paredes muito altas, caiadas e amareladas pelo tempo, o piso de cimento liso pintado de vermelhão. Duas grandes janelas de madeira maciça pintadas de azul claro, em paredes alternadas, proporcionavam ao aposento uma completa luminosidade, mesmo ao cair da tarde, quando os últimos raios de sol entravam obliquamente por uma delas e ali pairavam, até serem substituídos pelas sombras do ocaso.                    Num canto, estava o fogão a lenha; o fogo apagado, mas as cinzas ainda soltavam uma tênue fumaça esbranquiçada; panelas de ferro sobre a trempe; a parede escurecida pela fumaça que não era captada pela chaminé. No outro canto, lenha: toras grossas, outras mais finas, cacos de madeira, gravetos, tudo muito seco, estalando, pronto para vivificar o fogo. Entre o fogão e a lenha, sob uma das janelas, uma pia de cimento, também com vermelhão. Encostada numa parede, distante do fogão, havia uma cristaleira, mais precisamente um guarda-louças. Um móvel distinto, aristocrático, imponente. Dentro, pilhas de pratos de louça branca, pintadas de minúsculas florzinhas amarelas; copos, canecas, tigelas e travessas variadas, tudo arrumado, artisticamente equilibrado.
              Mas tudo isso vislumbrei quase que num relance, pois o que me prendeu mesmo a atenção foi a mesa, no centro da cozinha: uma pesada peça retangular, tosca, feita de grossas tábuas de madeira escura; dois bancos feitos da mesma madeira, rústicos e acolhedores, ladeavam a mesa no sentido do comprimento. Sobre ela, um caminho-de-mesa branco, de crochê e, sobre ele, o mais perfeito arranjo de frutas já visto. Era uma grande bandeja de porcelana azul contendo as frutas, desajeitadamente organizadas.
             Por baixo as mais pesadas: pequenos melões, um mamão verde e um abacaxi, com a coroa para fora da bandeja. Laranjas e maçãs formavam outra camada e, por último, recém colhidos cachos de uvas verdes e suculentos pêssegos completavam o arranjo.
          Um cenário perfeito para uma natureza morta, mesmo para o mais exigente artista. Os pêssegos, de um amarelo dourado e uma penugem suave, contrastavam com o amarelo esverdeado e áspero do abacaxi. Os cachos de uvas caíam suavemente e roçavam, levemente, as superfícies amarelas dos melões. As maçãs, de um vermelho vivo e brilhante, exalavam um perfume inconfundível, que se enovelava ao aroma cítrico do abacaxi. O verde do mamão combinava perfeitamente com os tons amarelos da composição.

            Ah, se eu soubesse pintar, guardaria para sempre esse cenário, colocaria na parede esse sonho, essa natureza morta – tão viva – e o olharia constantemente. Porque, por mais vívidos e reais, os sonhos acabam sendo esquecidos, se dissipam com o tempo.
           Mesmo os que sonhamos acordados, por mais intensos, acabam se desvanecendo, até sumirem completamente nos desvãos da memória.