Dona Cida

Dona Cida,

Apareceu em casa sem nenhuma recomendação, estava tentando mudar de vida, trabalhou desde os 8 anos na roça, falou que tinha 48 , parecia bem mais de 60, mas como trabalhou de sol a sol, acreditamos. Morava próximo, bairro dos Araras dos Pereiras. Nunca foi registrada, nem carteira tinha. Foi necessário ensinar a utilizar a máquina de lavar roupa, acender o fogão com a tecla automática, ainda não aprendeu como utilizar o micro ondas, mas chegará lá.

A limpeza dos vidros era péssima, descobrimos que não enxergava bem, levamos a um médico e encomendamos óculos, demorou a se acostumar, mas achou maravilhoso o mundo sem sombras. A limpeza não melhorou com a vista.

Pediu um dia de folga por mês para levar o marido, que é deficiente físico, em razão de ter sido atingido por um raio, para receber a aposentadoria dele.

Encantou-se com a nossa máquina de lavar roupa, tiramos uma para ela no crediário, o filho queria um game, pediu se pudéssemos avalizar um financiamento para ela comprar o jogo para o filho ficar longe das más companhias do bairro.

Herdou uma casa simples, vai escapar do aluguel, mas precisa fazer as ligações de água e luz e cimentar o piso.

Devagarzinho vai ajeitando a vida.

Hoje acordei as 6:45, queria fazer uma breve caminhada antes de ir ao trabalho, mas ao ser despertado, pensei comigo, vou não, vou aproveitar esta meia hora para esticar o sono. Pouco depois chega Dona Cida, que acordou as 5:00 para vir nos servir, sorrindo foi pondo a água para ferver, sem reclamar do frio aqui do pé da serra. Fiquei com vergonha e saí para caminhar.

De vez em quando ouço um zun zun, é a Dona Cida acompanhando alguma música no seu Celular com um fone no ouvido, razão de que temos que gritar para que ela nos atenda.

Puta merda, este desgraçado de ônibus quando chove não sobe o morro, tive que andar um bom pedaço para pegar outro ônibus mais tarde, justificando um atraso em dia de chuva. Se é Dona Cida que diz o palavrão não vejo razão para suprimi-lo aqui, pois não conheço maior ingenuidade.

Estes dias ela estava triste, descobriu que terá que trabalhar muito ainda para se aposentar. Os patrões anteriores não a registraram, para quem começou aos 8 realmente é injusto.

Dona Cida, trabalhadora rural, mulher de inválido, casa própria, mais ainda imprópria para morar, mãe de pré adolescente com poucas possibilidades de sair desta vida sem maiores expectativas.

Tentamos ser altruístas com ela, mas limitados pelo nosso egoísmo.

Pergunto-me o que nos envergonhava há pouco mais de 100 anos atrás, não era a escravidão? Será que daqui 100 anos a frente não vamos nos envergonhar desta desigualdade na nossa sociedade?

Eu já me sinto bastante desconfortável.

Outra pergunta: O que tenho feito para mudar isto? Poderia no lugar do "EU" usar o "nos", mas isto dilui a minha responsabilidade.

Uma vez em uma discussão ideológica usei aquele texto bíblico que Jesus diz ao moço rico, "Vai e vende tudo que tem e distribua aos pobres", mas o meu contentor conhecia bem a bíblia e respondeu, "Jesus conhecia o coração do Moço rico e disse isto diretamente para ele".

Reflexão: Será que esta pergunta também não cabe aos nossos corações, que como o do moço rico pode estar nas coisas que temos, ou nas que consumimos em detrimento ao amor ao próximo?

Dona Cida: Vive para servir, serve para viver.

Defranco
Enviado por Defranco em 21/07/2015
Reeditado em 22/07/2015
Código do texto: T5318356
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