AS MARCAS DA VIDA

Ontem eu quis ser gente. Você me insultou, não me deu chance de estudar, minha mãe me espancou com uma corda molhada e deus não foi lá em casa nem para fazer parar de doer as minhas feridas.

Dormi no chão frio por longos dias e por longas horas achei que nem existia mais. Senti a minha carne fedendo e minha alma longe, não abriam os meus olhos e os lábios totalmente ressecados. Vez por hora sentia um balde de água sobre mim e muitas palavras que doíam mais mais que as pancadas sofridas.

Não pude voltar à escola porque era uma aberração e vergonha para a família, o meu cabelo foi raspado e não pude sair de casa por um período longo de tempo.

Dentro de mim um sentimento de revolta fazia desejar a morte de todos, de cada um da forma mais doída que pudesse ser. Que os dentes fossem arrancados e as unhas arrancada com um alicate. Um dos olhos fossem furados e a boca costura...

Onze anos e pouco entendimento da vida. Castigo por ter sido pego no banheiro da escola fazendo coisa errada com os colegas. Os colegas que me pegaram, cinco, a força e, como eram já maiores e mais fortes, baixaram minha calça, puxaram minha cueca e batiam forte em minhas carnes, puxavam meus cabelos e de braguilhas abertas, iam passando o pinto em minha boca, nos meus lábios, forçando-me ao desejo que era deles, não meu!

Punido pelo desejo dos outros. Eu, em plena inocência ainda e muita dor dentro de mim. Punido e levado à casa dos vizinhos de fé incontestável. Obrigado a ouvir sermões de castigo, inferno, punição, arrependimento, fogo, morte, inferno, diabo, demônios, possessão...

Treze anos e muita surra, muito castigo, muita negação de tudo.

Mais um dia de pregação na casa do vizinho de fé incontestável. A esposa na igreja, meus pais em casa e eu na sessão de descarrego na casa do vizinho que iria dar um avivamento em minha alma. Na casa dele uma chamada urgente à igreja, sozinha em regime de oração para que deus livrasse de mim as marcas de pecado. O vizinho sai, o filho chega, em mim uma vontade de dizer alguma coisa.

Um corpo de homem em formação, mais velho que eu, apenas enrolado na toalha passando para o banheiro. Curiosidade me leva a observar a cena e de inquietação vou olhar pelo buraco da fechadura e vejo um corpo que se toca, ensaboado e do outro lado um fogo aceso em mim. Barulho, a água cessa e em paralisação sou flagrado por aquele corpo nu, ali, em minha frente. Puxado para dentro do banheiro, descubro a absolvição, o céu, o mérito, a libertação, outro fogo, a vida, mãos que me prendiam de forma suave, um deus! Demoninho sabido de bom que me fez feliz.

Foi a melhor sessão de descarrego de minha vida!

Descobri a santidade de um ato, de um gesto e perto desse fogo acesso, acendi em mim o desejo pela vida. Ele me quis mais vezes e me queria do jeito que eu também queria. Fomos felizes até que descobrissem a nossa safadeza e eu expulsa de casa.

Na rua aprendi a dureza da sobrevivência! Não tinha escola, não tinha família, não tinha mais o deus do desejo que me fazia ir ao céu de felicidade. Apanhei mais vezes, mais vezes dormi no chão, senti a carne enfraquecida e me aqueci no fogo abrasador dos meu iguais.

Dei a volta, formei-me na vida, ganhei nome e outras vezes me encontrei com o deus do meu afeto na farde de um policial...

Um dia quis ser gente, mais a gente mais instruída não me deixaram ser. Aprendi com a dureza da vida, com as portas fechadas e com o desafeto de outros tantos. Aprendi com as minhas dores e com a vontade de ser eu.

Um dia quis ser gente e sou, do meu jeito, da minha forma, com a minha identidade, com um desejo danado de bom de ser feliz, e sou!

Mesmo diante de tanta opressão, mesmo diante de tanta violência...

Quis ser gente e sou, na noite, de dia, todos os momentos que a vida me apresenta e me deixa ser, independente das marcas da vida...