A partida do doutor
Sabe, vovô era desses que não adianta muito falar, até porque muitas vezes não era necessário se comunicar com ele para perceber o que ele sentia, talvez ele seja uma das pessoas que levou mais a sério o olhar. Sim, em tempos de criança eu resgato alguns olhares dele, sempre risonhos, como era de praxe. Se for catar mais fundo nessa caixinha de nostalgia, posso lembrar com nitidez as histórias do México, e como de uma maneira engraçada e humilde ele mostrava o quanto gostavam dele... Lembro-me bem da história de um Natal, em que ele fazia questão de contar o quanto camarada um amigo seu havia sido ao ter a sensibilidade de notar que vovô não tinha lugar para passar a comemoração e lhe disse: “Ivan, vamos lá para casa, Natal é festa de família”. Ele era assim, fácil demais considerá-lo família, daqueles que o abraço durava uma eternidade de poucos segundos, e que o riso mais parecia um abraço de nossas almas.
Infelizmente a minha memória não tem registros claros de quando vovô exercia sua profissão, mas hoje cursando Medicina e ouvindo suas histórias fica claro que ele não era diferente... Vovô era assim, muito piadista, risonho, gozador, mas quando se falava em sentimentos e humanidade ele poderia te dar uma lição com tanta graça e responsabilidade possíveis. Fácil rir quando minha mãe lembra de que nos tempos de eu criança você fazia questão de sentar no chão comigo e perguntar tudo quanto possível de minhas brincadeiras, você era assim vô, simplesmente interessado, curioso, e esse exemplo do quanto eu tenho que melhorar para chegar a ser uma pessoa como você, fica meu muito obrigado por ser esse Norte tão certo na minha vida.
Sabendo que vai doer um pouquinho voltar às festas de família eu ainda insisto, pois de lá vem os mais memoráveis momentos, sabe vô, aqueles em que você deixava claro sua pontualidade britânica, ou mesmo suas piadas com a refeição... Você sempre trouxe risos fáceis... Não sou de tentar descobrir nossas missões e nem sei bem se as temos, mas se sim, a sua ficou muito clara para mim... E como todo fim de festa que agora chegou com todas as agruras e egoísmos da perda, eu não poderia deixar de recitar uns versinhos que você me ensinou:
“Pelas ruas da cidade andava um louco dizendo:
Não entendo, não entendo
E quando alguém lhe perguntasse:
O que é que não entendeis?
Ele sem voltar-lhe a face, respondeu com altivez:
Donzelas são sempre puras, senhoras casadas também
Viúvas são criaturas que de honesta o nome tem,
No entanto de pequeninos, os asilos vão se enchendo
E quem faz esses meninos?
Não entendo... Não entendo...”
Procurando desfrutar um pouco desse caminho que a imaginação me permite caminhar eu prevejo algo mais ou menos assim, vô. Você foi de hora marcada, escolheu a noite para não criar alarde no corre-corre do cotidiano, você era assim, nunca precisou de muito barulho para fazer sua parte, e sempre procurou se manter imperceptível diante da rotina, mas por onde passava vô, eu tenho certeza que era possível sentir tua brisa fagueira brincando com nossos corações, e envolvendo-os. Diante disso eu sei como foste, provavelmente despido de qualquer mordomia, você nunca fez questão dela, não posso dizer o mesmo da cerimônia, você exigia pontualidade e ordem, mas uma dessas coisas eu dou certeza, subisse por meio de balões, e esse tempo todo eu acho que contribui para teu lançamento por meio deles... Foi nosso futebol compartilhado, nosso riso com hora marcada, nosso abraços e beijos... Voa vovô, que tua leveza reverbere por onde você passar, mas não esquece de acenar de volta, pois teu garoto estará aqui de baixo acenando com um balão vermelho na mão, como uma forma de te relembrar que te ama muito.
Gabriel Melo Amorim 12/07/2015