Toda tragédia começa com uma linha em azul
Comece com uma linha reta, disse ela para si mesma. Linhas retas são honestas e despretensiosas. Tocou o papel com a ponta do lápis azul e riscou com firmeza na mão.
Gostava de desenhar com lápis de cor azul, muito mais que com grafite. O azul era uma cor serena e singela. Como o céu fosco de sol no dezembro. Como uma veia no braço. Veia nova, grossa, bonita. Veia maltratada se esconde da agulha, já sabe quando vai ser o pico.
Aproveitou a reta para, com alguns rabiscos precisos, criar uma veia.
Era como combustível, na verdade. Como uma injeção de vida num organismo meio morto. Ela já havia usado outras coisas, até se considerava entendida na coisa. Queria porque queria experimentar qual era a da H. Como na música do Lou Reed. Talvez fosse o próximo passo da Viagem, bicho, da Busca, era o que diziam pelo menos, como que ela ainda não tinha usado, ela não se dizia a tal da artista, vamos lá, experimenta, não é nada ruim.
O junk, como dizia Bill, é um caminho sem volta. Como um rio. Só tem um fluxo.
Ela desenhou um rio na continuação da veia. No começo era um riacho, de grandes pedras lisas cobertas de limo pelas quais a água gorgolejava, água inquieta e brilhante, e as crianças peladas pulavam e faziam festa. Naquela época parecia que todo mundo se conhecia, os pais da gente estacionavam o carro ali na beira e os homens já sacavam suas latas de cerveja e sentavam todos juntos e as esposas ficavam olhando a garotada, sempre prontas para uma tragédia, “sai das pedras, aí tem buraco, olha o fundo, tá indo muito longe, a água puxa...!”, e os homens de grandes barrigas, olhando seus carros quadradões de setenta e oitenta e poucos contando vantagem do serviço, da prole, da patroa, “Deixa o moleque, mulher”. Às vezes uma criança escorregava e batia a bunda nas rochas ou começava a engasgar na água, ou gritar que tinha ido água no olho se fosse mais chata, era um sufoco, não só a mãe do desastrado ia leoninamente acudir como todas as matriarcas deixavam seu posto pra correr até as crias, num instinto pandêmico de proteção.
Uma vez ela tinha ido com os dois irmãos e a mãe ao rio. Era dia das mães, ela se lembrava, estava até usando a camiseta de Minha Mãe é Nota 10! da escolinha. As crianças comeram Cheetos com coca na grama, ela e o menino do meio, e foram pra água depois de a comida abaixar enquanto o pequeno ficava com a mãe. Mas ela não ficava com as outras mulheres olhando os filhos. Estava com os homens, bebendo Glacial e fumando com o bebê agarrado precariamente ao peito estufado, enquanto o marido, coitado, estava muito ocupado com sua vida de delegado – lá do outro lado do Estado, ela contava aos machos enquanto o garoto do meio escalava uma árvore e caía de um galho, direto nas pedras do alagado.
“Era um menino tão bom, e você não cuidou dele, tinha que ter sido você, tinha que ter ido você e não seu irmão.”
Ela fez no papel com que o rio se alargasse e se dividisse em vários braços, que se pareciam com os galhos de uma árvore. Fez as folhas de uma copa frondosa. A vida costumava ser boa quando ela ainda se deixava ficar sob uma árvore do parque pela manhã, desenhando as pessoas que passavam e entregando os desenhos como presente. Você vai ser uma artista, eles diziam. Mas arte no Brasil não dá pé, tem que ter a manha, o contato.
Era um tal de um cara de São Paulo, parece. Falava bem, articulado, tinha uma presença que dava pra sentir como se quando ele estivesse chegando começasse a tocar uma batidinha de be-bop ao fundo. Bastante crítico, gostava do seu trabalho, ela era boa, mas faltava ousadia, não dava pra crescer naquela cidadezinha de merda três estrelas. Se ela fosse com ele pra Sampa, “ah, querida, você vai brilhar, lá a gente tem olho pra coisa boa, aqui não tem nada pra você mais” tudo naquela língua macia, mansa, quase paternal.
Suas mãos – suas mãos trabalhavam como loucas no começo, sempre calejadas, sempre cobertas de tinta. Começaram a apertar outras mãos, mais fortes, mais experientes. Descobriram que era muito fácil tocarem outros corpos, de homens ou mulheres, porque eles gostavam do que elas criavam, o Cara conseguia pessoas que vissem e comentassem seu trabalho e suas palavras e sua existência explosiva.
Mas o trabalho se tornou cada vez mais difícil, a inspiração demorava pra vir e o Cara demorava junto com ela, e a menina começava a brincar com as sombras, fazer experiências em que ela própria era a cobaia. Ela pensava em tentar coisas, abrir portas tão hermeticamente fechadas que se confundiam com paredes de tijolos a menos que prestasse atenção... Queria chegar mais longe e mais fundo e voltar com algo novo, algo nunca sonhado e que ao mesmo tempo sempre estivera lá, esperando para ser descoberto. Sentia que tinha potencial, mas lhe faltava algo, algo diabólico. Faria uma viagem ao abismo e traria um tesouro de lá, um Graal que salvasse sua carreira.
"Esperem só, eu vou voltar, dá uma olhada, eu vou ficar bem."
Um dos galhos de sua árvore desenhada em azul esticou-se para fora da folhagem e recebeu os dedos nodosos, reumáticos de uma mão velha.
Uma mão velha que descansava na maca do hospital ao lado da mão magra e doente, porém jovem, que desenhava. Uma mão desenhando outra. A mão de seu único parente que se importava que a grande e teatral artista estivesse definhando, cedendo ao vírus.
Não é certo que um velho durma numa cadeira ao lado da neta marcada para a morte. Não é natural. Não é justo.
Mas comece por uma linha reta. Sempre haverá uma linha reta.