PRAZER EM CONHECE-LO

Da série:Pequenas crônicas do cotidiano:

"O ABUSADO" - segunda parte

27/07/2010

Uma grande obra de revitalização está ocorrendo na minha rua.Dezenas de operários em meio à caminhões e máquinas pesadas circulam pelas laterais,e o resultado está saíndo dos melhores;Ciclovia,pista de caminhada,luminárias novas,bancos... Vou percorrendo do lado oposto,quando ouço:

_E aí,seu Joel?...Dando uma caminhada?

Olho na direção de onde veio o chamado e quem eu vejo?

Êle!!!...O homem do sorriso de cangaçeiro,o desconhecido,o que não larga do meu pé,etc...etc...

Aquêle!...À quem já citei em diversas crônicas,como um grude ou a reencarnação de alguém do meu círculo de amizades numa vida passada.Estava lá!...Era mais um , dentre os tantos operários. Executava o seu trabalho no setor de paisagismo da obra.

Nem fazia tanto frio na manhã de hoje e o distinto estava metido num pesado casacão cinza claro,boné de lã com abas abotoadas por debaixo do queixo e sobre êste,de quebra,um chapéu de feltro,daquêles do tipo "Panamá".Isso tudo,sem mencionar o cachecol que em duas voltas,envolvia-lhe o pescoço.

Pensei comigo:Ahah!...Hoje você não escapa.É chegada a hora de decifrarmos êste teu enígma.Vamos esclarecer alguns pontos obscuros nesta nossa estranha relação de amizade.

Vou me aproximando enquanto êle limpa nas calças a terra que lhe borra as mãos.Cumprimentamo-nos amistosamente! Senti nas minhas,a aspereza daquelas mãos calejadas do trabalho duro.

É de sua parte a abertura do diálogo:

_"Quero bem ao senhor,seu Joel.Sabe,tem gente de quem se gosta sem ao menos saber o porque.O senhor é um dêstes".

_Ora,meu amigo...Assim você me deixa meio sem graça.Devo-lhe um favor:Lembra-se daquêle galho de árvore que cortastes para mim,já faz algum tempo?

_Kapazzz! Que não,seu Joel.Foi só uma ajudazinha à toa,mas pode ter certeza de que na hora em que precisar do "índio véio",podes contar comigo. E tascou-lhe a frase de efeito:Mesmo porque:"Quem não vive para servir,não serve para viver",não é mesmo?

Confesso ter me sentido emocionado naquêle instante e fomos mudando o rumo da conversa para as mudanças do tempo,a família,as "gatas" que desfilam por ali,doenças...

Pelo seu interesse pareceu-me êste último o seu tema preferido.Puxou de sua mochila,uma sacolinha plástica e foi me apresentando um amontoado de medicamentos que lhe são administrados:

_Êste é para controlar a pressão,seu Joel!...Tomo tres dêles durante o dia.Êste é para a circulação do sangue.Êste é para fazer urinar. Rapazzz!...Mijo feito um condenado quando tomo "essa desgraça".rs...E êsse daqui...(Agora o sorriso ficou malicioso),vem direto do Paraguai.É uma "vitaminasinha" que é "pra firmar as coisas" kkkk...

_Ah!...Firmar o pulso,não é mesmo? Adianto-me.

_Mais ou menos,seu Joel!..Mais ou menos...kkkkkk (um sorrisão largado!)

Confidenciei-lhe também,o meu uso de alguns medicamentos.Sugeri fazê-los derreter sob a língua para um efeito mais rápido.

_Mas não acabam ficando com gosto muito ruim? Pergunta-me.

_Apenas um delicioso sabor de cabo de guarda-chuva,respondo-lhe.

O bate papo estendeu-se pelo tempo suficiente para que eu reconhecesse o grande ser humano que postava-se à minha frente.O típico cidadão anônimo,batalhador,com mais de 60 anos,dando um duro danado pra sobreviver,muito ativo apesar de tôdas as mazelas que a vida lhe impôs.Fraterno,hordeiro,apegado à família e dono de um entusiasmo que tinha algo de comovente.

Havia chegado a hora dos esclarecimentos,então fui lhe perguntando:

_Amigo,estamos sempre nos cumprimentando,trocando cordialidades,e ainda nem sei o seu nome:

A resposta veio num tom quase triunfal de quem orgulha-se do nome que carrega:

_Emídio Mathias Santos!...Seu criado.

Criado,coisa nenhuma,pensei com meus botões.Não sou senhor de engenho pra ter criados,ora bolas!

_Seu Emídio! Tenho muita satisfação em poder contar com a sua amizade,o seu companheirismo.Saiba o amigo,que poderá contar comigo da mesma forma e agora que sei o seu nome ficará mais fácil explicar-me quando me referir à sua pessoa.A troca de gentilezas e confetes durou mais alguns segundos...Meti a mão no bolso da calça e lhe ofereci uma balinha de hortelã .Êle me sorriu agradecido.

Segui em frente,ainda em tempo de ouvir o seu eloquente comentário aos demais companheiros da obra.

_Êsse "GORDO" é gente boa.kkkkkk...(sorriso de cangaceiro).

_"Gordo" é o teu passado,Emídio!..."Gorda" deve ter sido a tua projenitora,fui atinando com os botõezinhos da jaqueta...Mas,diferente das outras vezes,hoje não me zanguei com esta peça da minha sina.Apenas sorri,internamente,é claro,e prossegui a minha caminhada.Uma massagensinha no abdomen fêz-me sentir que não estou tão gordo assim.

Um dia ainda me chamarás de "Magro",meu caro Emídio.kkkkkk

Joel Gomes Teixeira