Aqui estava o deserto

Não entrou imediatamente. Da porta olhou o interior. Uma luz suave atravessava as cortinas da sala. Quietude e silêncio. A faxineira já tinha ido embora. Os filhos estavam na escola. A esposa trabalhando. Tudo limpo e arrumado.

Sua casa. Quatro horas sozinho, em paz. Não é que ele não gostasse da companhia da mulher e dos filhos, mas ficar sozinho assim, inesperadamente, no meio da tarde, era algo precioso demais.

Entrou. Fechou a porta atrás de si e olhou de novo o interior, agora com mais atenção.

Tirou a roupa e caminhou pela casa. No quarto, deitou-se, fechou os olhos e tentou não pensar em nada. Algumas imagens lhe vieram à mente, porém: coruja, livros, flores brancas, café. Silêncio. A tarde avançava lentamente, silenciosa e fria.

Meia hora deitado. Outras imagens: manjericão, Sherlock Holmes, vinho tinto, Viena. Levantou-se e foi ao escritório, onde colocou um CD que há muito tempo não ouvia: 'Kind of Blue', de Miles Davis. Sentiu a música atravessar-lhe a pele, a carne, os ossos, a alma. Sentiu... De olhos fechados, flutuando, sentiu... E sentiu-se... vivo. De pé, cercado por livros, fotos e quadros... Abriu os olhos e pegou um livro na estante: 'Poesia completa', de Manoel de Barros. Jogou-se numa poltrona e leu: “A gente vivia por fora como asa”. “Ninguém é pai de um poema sem morrer”. “Eu sou o medo da lucidez”. Que beleza! E Miles Davis... E a vida...

Decidiu quebrar a dieta. Foi à cozinha e comeu uma fatia enorme de bolo de banana. Receita da mãe: farinha integral, açúcar mascavo, canela, aveia e banana – muita banana. Comeu sem culpa, feliz, saboreando cada pedaço, lentamente. E Miles Davis...

Voltou ao escritório e se jogou no sofá, agora com um romance: 'Amuleto', de Roberto Bolaño. Leu em silêncio: “a cafeteria naquela hora me parecia magnífica, gasta e majestosa, pobre e libérrima, penetrada pelos últimos esplendores do sol do vale, uma cafeteria que me pedia com um sussurro que ficasse ali até o fim e lesse um poema de Rimbaud, uma cafeteria pela qual valia a pena chorar”.

Foi à cozinha e fez um café. Voltou ao escritório, com a caneca fumegando na mão, e vasculhou a estante até achar Rimbaud. Leu: “Minha alma imortal/Cumpre a tua jura/Seja o sol estival/Ou a noite pura...”. Leu de novo. E de novo.

Colocou 'The Doors'... Alguma coisa na música acendeu nele a imagem de uma noite estrelada no deserto. Foi à estante e pegou Pergunte ao pó, de John Fante, que abriu numa página marcada há muito tempo com um adesivo amarelo, já desbotado. Leu em voz alta: “Aqui estava a placidez interminável e muda da natureza, indiferente à grande cidade; aqui estava o deserto abaixo dessas ruas, ao redor dessas ruas, esperando que a cidade morresse para cobri-la com a areia eterna uma vez mais”.

Fechou os olhos e se viu transformado num enorme monstro de luz – um escorpião ou uma aranha, não sabia ao certo –, sozinho no deserto, numa bela noite estrelada. Sua luz mortiça azulada iluminava o chão ao seu redor. Seguia lentamente, sem rumo, sua luz piscando, falhando... Até que se apagou.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 15/07/2015
Código do texto: T5311750
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