Frágil
Sentei, pedi bolo. Quando a garçonete saiu, lembrei do café. Peço quando ela voltar. Tiro o sobretudo, dentro do café está agradavelmente quente. Abraço ele na cadeira ao lado, como se fosse a vestir, o que me dá uma impressão soturna que estou a espera de alguém que teve que sair rapidinho, pra atender uma ligação ou ir no banheiro. A mente tem direção. Imagina-la aqui seria no minimo hilário, ela que sempre odiou café, silencio e pouca gente. Entre minhas posses estão um livro de Sartre e o meu caderno onde escrevo. Não me sinto afim de trabalhar, deixo o ultimo de lado e abro o livro. Antes de terminar o paragrafo um prato com bolo e o meu café que não pedi são postos em minha frente.
- Se esqueceu do café.
Em um curto momento de confusão, observo o rapaz que agora me atendia.
- Mas eu não pedi.
- O senhor sempre pede. Cortesia da casa.
- Mas e se eu não quisesse?
- Significa que o senhor quer. O senhor sempre quer.
- Mas e se, hoje, eu realmente não quisesse?
O rapaz sorriu e deu de ombros.
- Bom, talvez o senhor não viesse no mesmo horário, sentasse a mesma mesa e colocasse o casaco na mesma cadeira.
Absurdo.
- Esse é um argumento muito frágil de se segurar.
- E não somos todos?
- Por acaso Sócrates reencarnou garçom?
Ele riu de novo. Mas o que diabos?
- Devo retirar o café? - perguntou.
- Não.
- Então, estava correto.
- Sim.
- E esse debate desnecessário?
Suspirei.
- Não tenho o hábito de sustentar suposições infundadas.
- Hábitos são tão mutáveis quanto a presença desse café em sua mesa.
- Mas isso é tão relativo!
Isso já tinha longe demais. Não fazia ideia como tinha chegado até aquele ponto. Suspirei novamente.
- Me dá o café - falei.
- De nada, senhor.
Ele olhava agora para além de mim, por cima dos meus ombros. Ele se virou, atravessou o salão e se juntou a moça do caixa, que polia o balcão de mogno, me deixando de cenho franzido. Olhei pra onde ele encarava e parei. Era ela. Estava do lado da cadeira onde eu deixei o casaco. Soltou os cabelos (fiquei sabendo depois, que isso foi intencional), olhou pra mim, olhou para a xícara de café. Pegou-o pela alça, o fitou. Cheirou o aroma, sorvou uma porção considerável se tratando dela, com uma pequena careta. Pousou-a, olhou ao redor. Passeou com os olhos todo o lugar com calma, como se fosse absorvendo, assimilando, detalhe por detalhe. Fora nós, havia apenas um senhor mexendo em seu computador, o rapaz e a moça do balcão. Se enrolou em meu casaco e pousou os olhos em mim.
- Acho que consigo me acostumar a isso.
Me deu um longo e sincero beijo. Se levantou e se foi.
Fiquei parado com medo de que o movimento quebrasse aquela ilusão, que ganhava de minha realidade. Voltei a mim quando o garçom se postou ao meu lado.
- Você está sem seu casaco.
Notei que estava com ela ainda, de fato. Acabava de cruzar a porta com ele, pendurado nos ombros.
- Pois é - disse. Olhei pra ele.
Sem dizer nada, ele completou meu café com vodka.