À PROCURA DE UM LUSTRE PARA O RETROVISOR
“Combater intolerância com intolerância é tão eficaz quanto apagar incêndio com combustível”.
A intolerância e, consequentemente, a barbárie são cíclicas porque a geração atual pouco consegue aprender com os erros das anteriores.
Não fosse assim, o mundo não teria iniciado um segundo conflito global apenas duas décadas após encerrar o primeiro. Irônica e tragicamente, ao invés de servir para evitar a Segunda, a Primeira Guerra Mundial foi usada como um dos fatores motivacionais para outra maior, mais estúpida e mais sangrenta ainda.
O mundo (isso inclui todos nós) vive o “complexo da mariposa”: sabe que, ao se aproximar ao máximo da lâmpada, seu futuro será, inevitavelmente, a morte; seu instinto, no entanto, a condena – ela está simplesmente mundiada e não consegue resistir à atração fatal do lúmen da invenção de Edison.
Caminhamos para um abismo sem fundo. Mas, como a mariposa hipnotizada pela lâmpada, estamos tão obcecados por nossas crenças (travestidas, ora de ideologias ora de filosofias, outrora de ativismo) que, embora sejamos capazes de antever o fim, não conseguimos recuar, pegar um desvio ou ao menos frear a marcha para o suicídio coletivo. Lamentável!
O passado não é professor nem livro didático; mas, se quiséssemos, ele bem que poderia nos ensinar belas lições, como, por exemplo, a de que a tentativa de combater intolerância com intolerância é tão eficaz quanto apagar incêndio com combustível.
“Cadê os líderes religiosos desse país?!” Perguntam [indignados] alguns. “Até quando vamos tolerar isso?!” Indagam outros. “Nós temos que reagir!” Conclamam os mais afoitos.
Sou religioso [pelo menos me identifico espontaneamente como] – jamais tive qualquer dificuldade de assumir publicamente tal posição. Também me identifico como um quase-ativista político, ligado mais precisamente às causas trabalhistas e aos direitos humanos como um todo. Não me sinto assustado nem surpreso com a proporção [galopantemente crescente] que têm tomado os debates em torno dos direitos e/ou das preferências dos homossexuais a partir do reconhecimento (pela Suprema Corte do País/STF) da legalidade da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Aliás, entendo que demorou muito; mas, para não perder o hábito de recorrer aos adágios populares, “antes tarde...
O que – embora também não me espanta nem assusta – causa-me certa angústia é a reação de parte de nossos líderes. Digo nossos porque, como já destaquei, independentemente de qualquer situação (passada ou presente), não encontro motivo pra, nem de longe, negar que sou ou sentir qualquer constrangimento por ser cristão.
Porém, repito, causa-me certa perplexidade ver que várias das ditas lideranças cristãs, pela forma como se posicionam em relação ao caso em lide, deixam claro que o passado não lhes ensinou muita coisa a respeito das consequências de se combater incêndio usando combustível. É como se se propusessem a estabilizar um ambiente usando nitroglicerina.
Há um sensacionalismo barato e injustificável quanto ao futuro que parece obscurecer completamente a visão desses líderes em relação ao passado. A paranoia em torno do fim iminente da família convencional e, por conseguinte, da humanidade como a conhecemos, parece está causando uma verdadeira amnesia nos alarmistas de plantão.
Quer dizer, então, que é só da parte dos religiosos que há intolerância? Não afirmei – e, sequer insinuei – isso.
O mérito deste ensaio, no entanto, não é exatamente a ação de A ou B; mas a reação de ambos ante a ação do outro ou, o que é mais perigoso ainda, ante a possibilidade de futuras ações.
“Nós temos que reagir!” Essa é a palavra de ordem de alguns dos mais influentes líderes religiosos brasileiros da atualidade face ao que consideram a iminente destruição da família convencional e, por conseguinte, o levante de uma “sociedade constituída por indivíduos despersonalizados, mentalmente desconstruídos... verdadeiras aberrações; o que, por conseguinte, atrairá o ódio e as maldições do Altíssimo sobre todos!” Ou seja: precisamos agir, e rápido; ou, em breve, assistiremos ao fim do mundo como o conhecemos!
Pelo menos numa coisa eu tenho que concordar com os meus irmãos cristãos alarmistas: “nós temos que reagir”... verdade. Aliás, estamos bastante atrasados, eu diria.
Temos mesmo que reagir. Digo mais: entre aqueles que defendem o direito à liberdade de cada um seguir o que acha melhor pra si e para aqueles sob sua responsabilidade, os cristãos deveriam está entre os primeiros a se colocarem de pé. Afinal, ninguém melhor do que essa categoria de gente sabe o que é viver e morrer pela liberdade de seguir e fazer o que acha melhor. Do contrário, como justificaremos nosso direito de seguirmos e concitarmos quantos pudermos a seguir aquilo que cremos ser o melhor para nós e nossos descendentes?
Nós temos que reagir!
De fato. Desde que o mundo é mundo, existem homossexuais – como existem prostitutos, ladrões, homicidas, pedófilos, estelionatários, vigaristas e toda espécie de desvirtuamento humano do plano original de Deus – e, desde que a Igreja Cristã é Igreja existe a discriminação e à negligência em relação a essas pessoas e as suas necessidades, tão legítimas e tão merecedoras das preocupações da Igreja quanto de qualquer outro tipo de pecador; leia-se tipo de ser humano. Bem como sempre houve – ora mais escancarada ora mais velada –, mesmo em um país de formação populacional notadamente africana, a estigmatização praticamente institucionalizada da cultura [não apenas da religião] afrodescendente.
Nós temos que reagir!
Temos que defender a extensão às minorias de direitos que, há séculos, usufruímos e pelos quais dezenas de milhares mataram e morreram para que, hoje, sejamos assistidos.
Nós temos que reagir!
Temos que, envidando todo o esforço possível, auxiliar o Estado, cuidando melhor de nossos filhos; e não sobrecarregando a escola com responsabilidades como, por exemplo, o Ensino de Religião.
Nós temos que reagir!
Temos que abrir as portas de nossos templos [e, principalmente, do coração] para que se cumpram as palavras do Mestre: “O Reino do Céu é semelhante a uma árvore, onde TODAS as aves se aninham...”
Nós temos que reagir!
Temos que adotar uma postura clara, que não deixe dúvida de que ministros de Estado cuidam de questões de Estado e ministros de Igreja cuidam de questões de Igreja.
Nós temos que reagir!
Temos que, pela nossa postura – com atenção, mas sem ataques de alarmismos – mostrar que o Deus que cremos é superior a tudo. Aliás, é onipotente, onipresente e onisciente. Portanto, ninguém há mais habilitado e mais interessado em por as coisas em seu devido lugar do que O Próprio. E, não tenhamos dúvida, no momento devido, Ele agirá segundo Seus próprios critérios.
Nós temos que reagir!
Temos que olhar pelo retrovisor da História (tanto secular quanto eclesiástica) e percebermos que os juízos punitivos do Altíssimo dispensam a colaboração humana – que o digam os antediluvianos, Sodoma e Gomorra...
Nós temos que reagir!
Temos que fazer uma autorreflexão sobre o que significa “(...)e sereis minhas testemunhas (...)” – ou será que estamos lendo: “sereis meus advogados de defesa”?
Nós temos que reagir.
Temos que reconhecer que não foi pela uniformidade, antes, pelo contrário, foi pela diversidade de crença (ou simplesmente de escolher não crê de forma alguma) que Cristo se permitiu ser crucificado – para que todos tivéssemos liberdade.
Nós temos que reagir!
Temos que manter em mente a lembrança do que resultou a convocação de parte do cristianismo medieval para reagirem ao que consideravam heresia da outra parte (também cristã) discordante.
Temos que reagir!
Temos que, na condição de “luz do mundo”, brilhar e fazer brilhar os raios da justiça divina, do amor e da bondade acolhedora de Deus sobre todos – isso inclui, inclusive, aqueles que usando a liberdade garantida ao custo da morte do próprio Cristo, optam por um estilo de vida diferente, e por que não dizer, muitas vezes, contrário ao nosso.
Nós temos que reagir.
Temos que lustrar o retrovisor do tempo, enxergarmos o passado e, com conhecimento de causa, reconhecermos que o enfrentamento ou combate daqueles que defendem o direito de serem diferentes não é uma experiência que valha a pena repetirmos.