Existência

Numa dessas noites em que a solidão nos prende dentro de um calabouço, em que a crise existencial se multiplica consideravelmente e passa a ser um reflexo constante de pensamentos esdrúxulos e a morte ronda e fareja o teu corpo _ E eu nem tinha dado a moeda ao barqueiro, aquele puto sem mãe. Não desanimei. E voltei ao meu corpo.

Sai para fazer parte da nata vagabunda de uma cidade que apesar de linda cheira mal. E a náusea se misturou a minha própria saliva como se eu a ingerisse _ que de certa forma é verdade. Incenso de mendigos viciados na porra do crack, putas se vendendo, menores roubando para alimentar os próprios vícios. E os mauricinhos exibindo as suas motos envenenadas com as Patricinhas de cabelão mostrando as coxas. Vomitei. Tudo rodou na minha frente. Não vi mais nada.

Despertei num bar ao lado de um homem aparentando uns cinquenta anos. Educado e com traços finos. Perguntava nesse momento se eu estava bem. Respondi que sim. E ele emendou _ Você desmaiou quase em frente ao bar. A sorte é que eu a observava a alguns passos atrás de você. Quer beber algo? Respondi que queria uma água sem gás, enquanto ele pedia a sua bebida. Esbocei dor quando passei a mão na minha testa e constatei um filete de sangue que veio junto ao meu dedo. O moço prontamente falou que eu tinha raspado com o rosto numa pedra, mas que por muita sorte nada de grave acontecera, exceto o hematoma que viria no dia seguinte junto com o cantar do galo. E que ele tinha pedido ao garçom pedras de gelo para o pequeno ferimento. Eu ri amarelo e o agradeci.

Quando o garçom trouxe a minha água e a bebida do cavalheiro, observei as pessoas a nossa volta. Todas indiferentes com as suas caras pálidas ao lado de seus pares, iluminadas apenas com os isqueiros que de vez em quando soltava quela faísca. Por detrás das garrafas de cervejas também se via o semblante distorcido das gargalhadas de um ou de outro, algumas mãos acarinhavam-se vagarosamente enquanto outras gesticulavam como se movimentassem bonecos. Me veio novamente a ânsia de vômito. Mas me segurei ao máximo.

O moço novamente em tom preocupado pergunta se estou bem, e eu afirmo com o menear da cabeça que, sim. Eu não estava nada bem. Me levantei e fui ao toalete lavar o rosto e verifiquei o corte superficial na minha testa. E até ri. Voltei a mesa e pedi a mesma bebida que o moço bebia. E o fato de eu nunca ter ingerido álcool não me assustava, queria ver a cara de Caronte bem de perto numa overdose. Era o meu último e derradeiro refúgio. Restava-me saber até quando aquele barqueiro filho da puta ia me atormentar nas minhas noites de solidão.

Sam Smith - I'm Not The Only One

(https://youtu.be/p_-U6dcTEOg)

Kathmandu
Enviado por Kathmandu em 13/07/2015
Código do texto: T5309287
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.