O ABUSADO

Da série:Pequenas crônicas do cotidiano

18/12/2009

Uma das vantagens (ou desvantagem?)de morar no interior é o fato de quase todos se conhecerem.Ou quando isso não ocorre, em botecos e esquinas ,circular verbalmente, folhas corridas ou fichas daqueles à quem não se tem intimidade.

Apesar de tudo,costuma imperar a solidariedade entre a vizinhança,a camaradagem,etc...etc...

Já se vai um bom tempo .(Alguns anos atrás)era tardinha,quase noite, eu desbastava umas árvores na calçada em frente à casa onde moro.

Sentia uma certa dificuldade para cortar um tronco mais grosso,quando aproximara-se uma bicicleta.Nela, um senhor aparentando pouco mais de 50 anos.Magro,rosto ligeiramente enrugado e um sorriso largo delineado por um bigode que , convenhamos, era algo de ridículo!

Na cabeça, um chapéu de feltro, surrado,preso ao pescoço por um barbicacho que disputava com o bigode o "gosto duvidoso".

Nunca o vira antes,nem fazia a menor idéia de quem fôsse a figura.

Cheio de intimidades,foi assim se dirigindo :

_Pelêja dura,heim?..."G o r d o" - Passe-me o machado e eu te darei uma mãozinha.

Sem pestanejar entreguei-lhe a ferramenta .Ele ,dando uma cusparada nas mãos ,esfregou-as e "desceu" o objeto cortante no tronco.Em poucos minutos o viçoso estava ao chão.

Olhou-me com ar de superioridade e num tom irônico disse-me:

_Tá do gosto?... "G o r d o".

_Muito bom; respondi. Quanto devo pelo trabalho? Perguntei-lhe.

_Imagina!,não me deve nada.Fiquei mesmo é com pena do amigo.Afinal,"bolear" um machado bem no jeito,não é pra qualquer “bundinha”.E...Você tem cara de quem não sé dá lá muito bem com o instrumento .Não me leve a mal,mas é o que penso rsrs... Depois,tem aquela coisa,né?"Uma mão lava a outra e as duas juntas lavam a cara",não é mesmo? Vai que um dia eu precise do amigo?

A citação da frase de efeito emoldurou-se em largo sorriso embigodado.

Observando aquêle seu chapéu já "bem rodado"(ensebado) ,lembrei-me de outro chapéu ,quase novo ,que pertencera a meu finado pai."Usado somente em ocasiões especiais",conforme êle dizia, ficara entre os seus pertences quando se foi .Ofereci ao "agora meu amigo" e êle de pronto agradecendo,prontificou-se a vir buscá-lo no dia seguinte.

Um pouco antes de sair,o abusado sentiu-se no direito de dar-me um tapa de leve no abdomem,acompanhado da recomendação:

_Continue a desgalhar o que sobrou,"G o r d o"...Vai ser bom pra dar um jeito nesta barriga.Rindo ,sumiu na estrada feito um zumbi ciclista. Claro, não gostei muito da intimidade mas apalpando-me,admiti que a "barriguinha" desenhava uma ligeira proeminência.

No dia seguinte,encantado com o chapéu,alisava-o,mirava-se no espelho...Num tom de contentamento foi dizendo:É um "Ramenzoni" legítimo! Vou usá-lo "somente em ocasiões especiais".Confesso que senti um estranho arrepio diante daquela frase,minha já tão velha conhecida.

Desde então,não mais o vi,nem mesmo fiquei sabendo o seu nome,creio nem êle soubesse o meu,já que insistentemente chamava-me de gordo.

Tarde de um domingo qualquer. Durante minha caminhada,cruzando por um terreno baldio,observo um homem acocorado vigiando um cavalo no pasto,preso a uma corda.Nada que me fosse do interesse,prossegui sem dar muita atenção à figura.De repente,aquela voz conhecida:

_ Fazendo uma caminhada?...G o r d o!

Olho para o lado e quem vejo por ali? Êle!...O senhor da bicicleta,do machado,do bigode ridículo,do sorriso de cangaceiro....Achego-me para cumprimentá-lo.Está ,agora ,todo produzido.A calça com vinco é presa por um cinturão de fivela larga e reluzente.Destaca-se em saliência,a figura de um cavalo.Camisa branca e...O "Ramenzoni legítimo", na cabeça.Impecável!...A ocasião deve ser especial,atino com meus botões.Exalava um cheiro forte de loção e,o abusado, havia se desfeito do bigode ridículo.

Entabulamos uma ligeira conversa,relembramos o galho da árvore naquela tarde e êle confidenciou-me estar numa pendenga brava.Coisas do coração,destas que a gente não consegue dominar.Mulheres! Essas danadas kkkkkkkk .

Proferiu seu desabafo,retirando o "Ramenzoni" da cabeça em sinal de respeito a “tôdas as formosuras do mundo”,segundo suas considerações.

A seguir completou:

_"Mas!...é a vida,né? G o r d o.Quando não dá certo com uma a gente vai logo partindo pra outra .Obviamente que tais divagações(tão filosóficas) vieram envoltas naquele sorrisão, sua marca registrada.

Retomei o caminho e já ia distanciando-me quando meus ouvidos foram novamente atingidos pela recomendação:

_Caminhar faz bem,né? G o r d o. É bom pra saúde,purifica os pensamentos, além de te ajudar a perder essa "barriguinha"!...Kkkkkkkk.....

Confesso não ter achado a menor graça mas,sugestionado, depois de algumas apalpadelas abdominais tive de render-me à constatação do apaixonado do domingo. Percebi uma proeminência agora bastante acentuada.

Atinei com meus botões:Gorda deve ter sido a tua progenitora, seu mala desconhecia,tranqueira sorridente,entre outras amenidades do gênero.

Apesar de tudo,Prossegui sob um céu imensamente azulado,admitindo que o "abusado" era mais uma destas tremendas figuraças que permeiam meu caminho.

Joel Gomes Teixeira