Texto publicado no Jornal "O GLOBO"   de 7 de julho de 2015
 
 
 
Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net

Por Arnaldo Jabor




“Tenho tido pesadelos, senhor juiz; sonho que morri
assassinado por mim mesmo, que estou preso com traficantes estupradores. Não
mereço isso, eu, que sempre assumi minha condição de corrupto ativo e passivo.
Por isso, hoje sou delator, senhor. Mas não sou apenas um delator de obviedades
sabidas há séculos, tipo fulano levou tanto de grana, sicrano recebeu propina
etc. Isso é café pequeno. Eu vi muita coisa com estes olhos que espiam pelas
janelas da Papuda, esperando minha redução da pena. Eu faço uma delação
profunda que desentranha dos suspeitos e acusados o que lhes vai na alma, nesta
maratona de roubalheiras.
Digamos, até faço uma delação psicanalítica. Sou
profissional e didático... Considero-me um técnico, um cientista da corrupção
nacional...
Eu estou hoje, senhor juiz, feliz no lugar da verdade —
tenho o prazer vingativo do dedo-duro. Para mim, que vivi mergulhado na
mentira, falar a verdade até me inebria, me sossega.

Já levei muito dinheiro vivo para uns canalhas durante um
jantar nordestino, dei-lhes a grana, entre moquecas e sarapatéis, que eles
repartiram ali na cara, enquanto se refocilavam em chopes e gargalhadas, notas
de dólares voltejando no ar, promessas de joias para as esposas fascinadas com
os belos maços de grana, prostitutas à espreita nos bordéis próximos,
‘laranjas’ recebendo gorjetas magras, sorrindo com bocas desdentadas, notas
frias preenchidas com avidez, em suma, um espetáculo sem ‘finesse’ que a mim
escandaliza. Mas não sou um otário e me resguardei — gravei tudo no meu celular
iPhone 6, à disposição de vossa meritíssima pessoa. Lá estão as bocas
gotejantes de volúpia, os dedos vorazes, um espetáculo educativo sobre a alma
nacional.
Também, senhor juiz, delatei aquele caolhinho da Petrobras
que conseguiu amealhar R$ 97 milhões só de gorjeta, o que até me deixa um pouco
deslumbrado, porque é um marco histórico na corrupção do planeta. Sem querer
debochar de seu defeito, aqueles olhinhos piscavam, passando uma fragilidade
quase proposital que esconde uma alma de desbravador, um ousado inventor de
tretas e tramoias; dá até uma certa pena vê-lo magrinho esmagado por um tesouro
perdido, enlouquecendo de arrependimento na celinha da polícia.

Delatei a vossa senhoria um ex-presidente da República que
me tomou R$ 20 milhões, mesmo debaixo de opróbrio em que vive há 25 anos. Eu
não aguentei e ousei lhe perguntei: ‘Por que você quer essa grana toda? Você já
tem tanto...’. Ele não respondeu, óbvio, mas eu ouvi sua resposta muda: ‘Não
roubo mais por necessidade; é prazer mesmo. Estou muito bem de vida, tenho sete
fazendas reais e sete imaginárias, mando em cidades do Nordeste, mas sou
viciado na adrenalina que me arde no sangue na hora em que a mala de dólares
voa em minha direção.’

Delatei o tesoureiro que me levou milhões em doações para
o PT eleger o Lula e a Dilma. Ele teve a cara dura ‘revolucionária’ de me
exigir: ‘Precisamos de dinheiro para renovar nossa utopia, como disse nosso
Lula!’.‘Agora se você não soltar a grana logo, esquece o contrato
para superfaturar a nova refinaria.’ E riu debochado: ‘Afinal, o petróleo é
nosso!’. Soltei o tutu sim, senhor juiz, se não minha empresa quebrava... E
valeu a pena, apesar de a PF ter descoberto o superfaturamento 20 vezes maior
do que aquela mixaria de um milhão de dólares que doei para a ‘revolução
socialista’...
Perdoe-me por rir dessa piada
vermelha...Eu mesmo levei dinheiro vivo à sede do PT,
eu, um homem refinado (creia-me, sr. juiz), tive de me submeter a senhas, se
não não entrava. O porteiro perguntou a mim: ‘Tulipa’? E eu respondi: ‘Caneco’.
Pode essa humilhação depois dos muitos milhões que entreguei àqueles moleques
bolivarianos? E o ladrão receptor, um boçal com estrelinha no peito, ainda foi
grosso: ‘Cadê o ‘pixuleco’?’.

Delatei aquele ‘mão grande’ da Petrobras que investiu em
arte, em quadros e esculturas contemporâneas para lavar dinheiro, mas suas
obras de arte são medíocres. Esse burro poderia ao menos comprar coisas de
valor e não aquelas bobagens penduradas na parede — um Miró falso ao lado de um
Romero Britto. Roube, mas com ‘finesse’.
Eu delato, senhor juiz, porque me tiram do sério suas
negações diante do óbvio. Eles negam tudo, ninguém fez nada nunca e Brasília
vira um palco vazio sem atores. Isso desperta em mim os ‘impulsos mais
primitivos’, como disse nosso pioneiro Roberto Jefferson... E nada chega ao
Lula, esse sim, o grande culpado desse filme de horror... Será que ele tem
parte com o demônio para ficar tão blindado? Como disse um dos presos do
petrolão: ‘Que país é este?’.
Um país onde os presidentes do Congresso estão sendo
investigados na Lava-Jato? Aliás, eles nem ligam, sorriem, pois têm foro
privilegiado no STF...
Por isso vos digo: tenho orgulho de mim, senhor. Minha
delação é histórica. Eu topava uma propinazinha, tudo bem, mas isso, não. Eles
estão desmanchando o país. Um dia serei louvado por isso.
Assim, senhor juiz, permita-me citar o Padre Antônio
Vieira: ‘Eles furtam em todos os tempos de verbo: furtam, furtavam, furtaram,
furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse’.
Sem contar as carantonhas que nem precisam de acusações:
Ricardo Pessoa (o paletó apertado em sua grande barriga), o Edison Lobão
(fascina-me a vaidade desse feio), o sorriso tático do Marcelo Odebrecht, as
caras “revolucinárias” de Edinho Silva, Vaccari, aplaudidos de pé pelo ex-PT…
Tudo está na cara…

Por isso, senhor juiz, acho que presto um serviço
relevante ao país e lhe peço: não me ponha numa cela de 12 metros quadrados,
varrendo o chão e limpando a privada.
Anseio, meritíssimo, pela doce tornozeleira eletrônica que
me comunicará com os satélites no céu, o que me deixa emocionado, pela poesia
que isso encerra: meus malfeitos no espaço sideral perto do Cruzeiro do Sul!”