Kung fu
Eu sempre gostei de atividades físicas. Sempre que posso, dou uma corrida pela orla da cidade, mas eu me atenho mesmo a academia básica. Quando eu era mais novo, eu fazia de tudo. Natação, futebol, essas coisas. Mas eu era muito atraído por artes marciais, sobretudo as orientais. Gosto muito do oriente desde pequeno, sempre quis ser um ninja ou um samurai, entretanto o mais perto que eu tive disso foi ter um amigo japonês. Fiz quatro anos de judô, alguns meses de caratê e muitos anos de boxe chinês. A beleza dos movimentos me admirava, e a luta, a sucessão muitas vezes ensandecidas de golpes que desembocava numa rápida finalização me deixava extremamente afoito, a sensação do sangue quente, a adrenalina, o runner’s high. Gostava da disciplina. Me sentia honrado em ver meu professor se orgulhando de meu progresso, da minha ascensão do dojo. Apesar de ser uma luta, a maioria das artes marciais pregam a não violência, a utilização da arte para fins de defesa apenas. Sempre honrei esse fundamento, faria questão de utiliza-lo apenas em questões de vida ou morte. Principalmente de morte. Lembro-me como nós nos sentíamos invencíveis, com historias e cicatrizes de tentativas frustradas de assalto por reações rápidas e imobilizações seguras. Ninguém poderia com a gente.
Nós treinávamos na quadra de um prédio da nossa rua, que ficava atravessando a garagem. Pois em um dos dias desses treinos, uma mulher entra na garagem com seu carro. Normalmente, sem nenhum recurso que daria drama a sua vinda. Ela estacionou o carro como habitualmente e saiu dele. Pouco antes disso, nos havíamos ouvido um pequeno chiado e um certo movimento perto do veículo e paramos para olhar. Visto os olhares na direção dela, a moça avistou o que era: um gato se contorcendo, tremendo. Na mesma hora ela arfou, os olhos arregalaram, as mãos foram a boca. Ela correu para dentro do carro de novo e saiu em disparada para qual que fosse o lugar. O gato continuou ali, se digladiando contra algo que ninguém podia ver, talvez que nem sequer existia, até cuspir uma borra de sangue e morrer. Um silencio anormal na quadra se instalou, interrompido apenas por uma respiração mais forte. Nosso professor (que sim, era oriental, mas não era o pináculo daquela sabedoria mística que todos esperam que um lutador de kung fu seja. Inclusive, nós o chamavamos de Zé), deu um forte pigarro. Com um ar solene, entoou.
- Aprendam meninos. Não é o golpe mais forte que é o mais letal. É aquele que não se vê.
Ninguém entendeu porra nenhuma daquilo. Mas a aula terminou com uma aura meio soturna, e todos passaram meio longe do gato morto. Naquela época eu não ligava muito pra animais, mas aquilo marcou nós todos. Talvez tenha tido uma identificação com o gato e a sensação de invencibilidade tenha diminuído um pouco, um choque necessário para o amadurecimento que custou uma vida.
Mas refletindo hoje, eu não sei se o professor falava da gato ou se ele falava mesmo era da mulher.