A Convidada de Honra
 
No ano de mil novecentos e noventa e dois em Boa Viagem Ceará eu não era gente.
Frequentava o quinto ano do ensino fundamental. Frequentava porque estudar eu não estudava, mesmo assim conseguia o feito de ser uma das primeiras da sala.

As lembranças se confundem. Desconfio que a Marlene está mentindo sobre o ano. Ou ficando velha. Ou as duas coisas.
O que é de verdade é que, certa tarde, eu estava na minha hora preferida de escola: o recreio. Eu era ver um menino. E feio, ainda por cima. Não gostava de ler nem escrever nem estudar, queria só brincar.
Dos detalhes não me lembro, só que fazia sol e eu vi a Marlene me chamar da calçada. “Vera, a Rachel de Queiroz tá aqui!”
A Marlene sempre foi estudiosa. Achava que eu devia fazer Letras mas o último lugar onde se aprende a escrever é no curso de Letras. Porque não é a faculdade que nos ensina, a própria Calíope é quem nos escolhe, segura na nossa mão e sopra em nossos ouvidos o balé das palavras.

Apois. Ela estava na sala dos professores. Fui só por curiosidade que naquele tempo eu era muito braba. Não tinha lido nem O Quinze. Conhecia-a de um texto do Manual de Apoio, “A Telha de Vidro”. .
A primeira coisa que eu vi foi um sorriso cheio de dentes. Depois o resto, o rosto digno, olhinhos miúdos e muito simpáticos, os óculos de armação grossa. Óculos de senhora. E os cabelos grisalhos. Era muito bonita, a  madrinha. Não no sentido estético que desse não dou notícia porque com ele não me importo. A beleza dela era como uma aura, um sinal que só se encontrava nas pessoas de antigamente. Como alguém que não fosse desse mundo. Já era imortal, obviamente. Mas disso eu também não sabia.

Aproximei-me, matuta. Ela estava sozinha, sentada na sala. Os braços repousando sobre a mesa, Estendeu-me a mão. Apertei.
A toalha da mesa era de renda branca, para ocasiões especiais, coberta por um plástico grosso, transparente. E havia um jarro com flores artificiais.
Devo ter balbuciado algo. Pedi um autógrafo e lembrei-me que não tinha caneta nem papel nas mãos. Ela pegou um guardanapo e assinou para mim.

Se eu pudesse tirar uma foto do que há dentro da minha cabeça agora vocês veriam o autógrafo dela no guardanapo. Ficou guardado nas gavetas da minha memória, lá onde eu guardo a primeira mirada dos olhos castanhos da flor, o primeiro beijo que o L… me deu, o primeiro momento em que ouvi meu nome em um prêmio de literatura. O papel físico perdi em algum lugar entre o espaço e o tempo. Mas recordações, graças a Deus, eu as tenho bem guardadas.

Não tem como descrever precisamente uma lembrança, ainda mais quando não valorizávamos o momento. Para mim ela era só uma escritora e o recreio me esperava.

Hoje eu sou só uma escritora e a vida ainda me espera.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 07/07/2015
Reeditado em 10/07/2015
Código do texto: T5303334
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