A Pisa do Jovino
 
Quem já andou pelo Sertão decerto conhece a figura do sertanejo ingênuo. Trata-se daquele homem de bem que vive isolado da civilização, não dá notícia das guerras mundiais nem dos movimentos da Terra. Cuida do seu roçado, das suas cabeças de gado, ofício que vai passando de pai para filho.
Assim era o Jovino, chapéu de couro, sorriso franco, um autêntico filho do sertão.
O Jovino, viúvo, tinha uma única filha, moça que não era exatamente bonita mas tinha "uma coisa" um feitiço que deixava os homens no mínimo embeiçados. Se houvesse homens na localidade, claro. Porque naquelas brenhas não havia viva alma além do Jovino e sua filha.

Certa feita, quando o Jovino chegou do roçado, encontrou um cavalo apeado no pé de algaroba. "Laivai", pensou ele, "será que é gente"?
E entrou. Encontrou na sala a filha, em conversa animada com um cabra todo de branco. A moça foi logo apresentando o sujeito ao pai, dizendo que era homem de grandes poderes e conhecedor de rezas para o bem e para o mal. Resumindo: macumbeiro fino.
O forasteiro, ao ver que se encontrava em casa de gente simplória, tratou de inventar um monte de mentiras, que tinha uns parentes ricos a uns três dias de viagem e o seu cavalo, um puro-sangue andaluz enviado de Espanha por um duque seu amigo, não era acostumado a percorrer grandes distâncias sem um largo período de descanso.
O Jovino ficou maravilhado com o visitante. Mandou a filha matar uma galinha para a janta que aquela noite, pelo menos, o amigo dormiria em casa de gente humilde mas hospitaleira. Quis saber o nome do ilustre hóspede e o sabido, pego de surpresa, inventou um pseudônimo: Pai Prudêncio de Xangô.

Deveras, Pai Prudêncio de Xangô era sabedor das coisas. Tirou a carga do cavalo e foi desenrolando imagens de caboclos, pretos velhos, paramentos, velas e uma toalha branca, que estendeu em cima da mesa do Jovino. Naquela noite, antes da janta, conduziu cerimônia religiosa com muita seriedade e empenho, cantou, dançou, vieram umas entidades dar conselhos ao Jovino e à menina. Só que em meio às verdades dos pretos velhos, Pai Prudêncio ia plantando mentiras na cabeça do dono da casa e, se passando pelo próprio Senhor das Matas, inventou que havia pistoleiros tocaiados pela estrada à sua espera para matá-lo e tomar-lhe o puro-sangue andaluz. O Jovino morreu de pena. Prometeu hospedar o pai de santo por quanto tempo fosse preciso e pediu a bênção a "Oxóssi".
Dias e dias ficou Pai Prudêncio passando bem na casa do Jovino. Passava o dia em folguedos com a moça e à noite, quando o Jovino chegava do roçado, saía com ela para as encruzilhadas, oferecer presentes aos orixás pela saúde do Livino e bom inverno no Sertão.
O nosso amigo era bobo para certas coisas mas esperto para outras. Bom observador, logo aprendeu as palavras cabalísticas, as rezas, as maneiras de fazer os caboclos baixarem.
Certa noite, quando o pai de santo saiu com a pareceira às obrigações noturnas, o Jovino paramentou-se, acendeu as velas, falou as palavras mágicas e os caboclos vieram. Mas não eram exatamente os que se manifestam em casa séria. Eram de outro tipo, zombeteiros e, pior para o Jovino, violentos. E cadê que o ele soube fazer os santos subirem. Soube só chamar. Aí a peia cantou. Era mãozada, rasteira, murro nas costas, até a cara do Jovino esfregaram no chão. Bateram até cansar o braço, depois foram embora para o reino do Encantado.
Todo doído de sola o Jovino foi direto pra fianga. Quando a dupla voltou da noitada encontrou tudo arrumado como deixara.
"O pai foi dormir cedo, não foi, amor?" Reparou a moça e o "amor" achou foi bom, assim ele não veria o vestido da filha todo sujo de terra, tanto que rolaram nas encruzilhadas cumprindo as "obrigações".

No dia seguinte o Jovino saiu foi cedo para o roçado. Quando os pombinhos acordaram, nem sinal do dono da casa.
Pai Prudêncio, percebendo que tinha ido longe demais nas artes com a sertaneja, inventou uma desculpa esfarrapada: ia alugar uma casa na cidade, deixar suas coisas e buscar a garota naquele mesmo dia. E mandou que ela arrumasse a trouxa pois haveria de ser sua mulher. Juntou as coisas sagradas, encangalhou o cavalo e ganhou o mundo. Nunca mais voltou.
O Jovino, para explicar a cara e o corpo cheio de hematomas, disse à filha que tinha enfrentado os pistoleiros que queriam matar Pai Prudêncio.
Passou o tempo e nada do homem voltar, e a pequena família concluiu que os pistoleiros teriam-no pego em alguma paragem do sertão. A moça chorou uns dias seu namorado morto mas depois conformou-se que era de natureza alegre. E o Jovino, esse nunca mais quis saber de conversa com o povo do outro mundo.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 04/07/2015
Reeditado em 08/07/2015
Código do texto: T5299840
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