Uma dorzinha boa.
Há um dito popular que diz: tudo o que é demais, aborrece! É verdade. E, às vezes, vai muito além disso. Água é vida, como se sabe. Mas água de mais, afoga e mata. Entre as melhores coisas da vida está o abraço. E os muitos tipos de abraço expressam situações e sentimentos diversos. Pode ser de saída ou de chegada de despedida de amigo de amada de filhos e de urso. Abraço demais aperta e mata. Emoção de mais, pára o coração e mata. A lista é grande e ela ainda aceita muitas variações sobre o mesmo tema. Até carícia, que é uma delícia, se for demais não há quem agüente.
Tem gente, contudo, que gosta de passar do ponto, de ir um pouco além e, parece, sentir uma enorme satisfação com o que é demais e doloroso. Sentem uma espécie de dorzinha boa.
Não quero entrar no que não conheço direito; mas sei que já descobriram e deram nomes para o gostar e sentir prazer com o sofrer e com o fazer sofrer. Sou desafetado na avaliação desses desgarres, digamos assim, e trato apenas do que observo com olhos e ouvidos curiosos.
Como tem gente sofrendo! Gente atormentada por desvalias incontáveis. E percebi que muita gente, no entanto, sofre por espontânea vontade; por opção e por prazer, é claro. Notei, igualmente, que esse sofredor é também um insatisfeito. Sofre por sua insatisfação e, deliberadamente, é insatisfazível para poder ter a sua amargurazinha diária.
Tem gente que não se contenta com o que já tem. As sociedades humanas sempre foram formadas por grupos desiguais em todos os tempos. Por tanto a dose de sofrimento que já temos deveria ser suficiente para nossa trajetória judaico-cristã nesse vale de lágrimas. Se nosso país está virado num chapéu velho; as cidades são perigosas e as instituições permanentes tornaram-se passageiras enquanto aquelas que podem ser mudadas são as mais perenes, de minha parte declaro-me satisfeito. Se essa for à parte que me toca, ela me basta. Mas, ainda assim, como se isso já não bastasse, tem gente insatisfeita com o sofrer que está por natureza inseparavelmente ligado a todos os seres humanos. Pois insatisfeitas procuram mais sofrimento, e encontram, nos programas policiais, e nos religiosos, que as emissoras de televisão apresentam o dia todo, e onde a desgraça pode ser apreciada melhor. Acidentes, tragédias e todo tipo de danação, flagelo e maldição são mostradas com o realismo que a tecnologia proporciona e com a hipocrisia-crítica de um só princípio maniqueu de estrepitosos apresentadores e pregadores de igrejas do terceiro milênio recém começado. Se aqueles expõem o cerne do mal, esses prometem e oferecem o que você precisar; e pra já.
Com uma linda salva de palmas para o senhor Jesus ou com saracoteios e cantorias de conteúdo chinfrim, o seu infortúnio já vai terminar. Mas se isso não resolver reze em línguas: alabarí alabará, alibabá vai te salvá.
Os sofredores insatisfeitos adoram (!) isso, e o jeitão moderno do ritu que seguem nessa nova liturgia vulgar.
Outra prática do sofredor insatisfeito é a repetição de pedidos; cada um deles sete vezes. Mas deve mudar as inflexões para ressaltar certas palavras. Se depois disso tudo não conseguir alívio para o sofrimento, ligue e peça sua oração.
E assistindo a desgraça alheia pela televisão – e são dezenas as opções - e com ela se mortificando, num prazer que só a culpa de nascença é capaz de oferecer, procuram - e acham - sua dorzinha básica supondo haver relação da sua causa com o efeito da causa do outro.
A insatisfação desse tipo de sofredor, porém, não é contestatória, indignada; não é daquela que levanta e sai para resolver o problema. Ela é paradona, pesada. Não se move porque ela é gerente de problemas-permanentemente-provisórios. Os problemas do sofredor insatisfeito são ótimos. Machucam, às vezes, é verdade, e até mais do que deveriam; mas a dorzinha que eles causam, até que é boa. São pequenos problemas, em geral passageiros, e que não causam muitos danos. Outras vezes, porém, nem são problemas, mas assim são tratados para dar mais ênfase a uma coisa que não é. Quando sofrem com a dor inegável, com o mal incurável e devastador, ainda assim sentem que a dor é uma dorzinha boa. E perenizam o sofrimento alheio, o que para eles dá um certo prazer.
Vulpino Argento o demente, que me tira o azimute com suas observações, jura ter presenciado “um diálogo possível” entre dois sofredores insatisfeitos.
Sofredor Insatisfeito 1- Você também tem caroço?
Sofredor Insatisfeito 2- Vários! Um nas costas outra na perna esquerda...E agora parece que tá nascendo mais um na minha bunda.
SF 1 - Puxa! Quantos, hein! Eu tenho só dois.
SF 2 - E dói?
SF 1- E como! Tem dias que eu quase não agüento. Mas, faz parte!
SF 2- De todos os meus caroços, o que mais dói é o da minha bunda. Também, sou obrigado a sentar em cima dele, né! Aí, né, tem mais é que doer mesmo.
SF 1- Eu tenho alguns amigos que também caroços. Um deles também tem um caroço na bunda.
SF 2 – Olha! É mesmo? Pergunta pra ele se o dele também dói?
SF 1– Dói, sim! Ele já me disse. Mas o meu caroço da cabeça dói mais do que o dele. Às vezes a dor vai diminuindo, diminuindo. Não passa. Mas, fica aquela dorzinha boa!