Dia cinco

Lembro-me tanto desse dia... Como me esquecer? Era aniversário do meu irmão em um haras, há muito tempo. Eu contava uns dez anos. Foi a primeira vez em que tive contato direto e vim a saber realmente o que era a morte, como era morrer, como era ver alguém morrendo – e não poder fazer nada.

Senti a dor da perda, e ainda no meu conflito interior, na minha cabeça de criança, eu buscava compreender alguma coisa, e digo: não pude. Eu não fazia a mínima ideia de como era morrer, e eu via à minha frente alguém agonizando, sufocando, agarrando-se no último fio da vida. Eu sabia que todos iríamos embora um dia, mas não compreendia porquê nem como – e ainda não compreendo, mas aceito – e compreendia menos ainda aquele vazio instantâneo que me tomava pouco a pouco. É isso que a morte nos deixa? Esse vazio? E agora?

Agora eu não irei mais brincar com as galinhas no quintal, nem tomar aquele café gostoso da roça que só D. Francinha sabe fazer, nem catar goiabas, nem brincar ou brigar com meu irmão naquele quintal, nem sentar mais naquela sala e ouvir as suas histórias. Por mais que eu quisesse, eu não entendia. Era a primeira vez que eu sentia a real perda da vida; sobre como somos seres frágeis; e, sobre como tudo pode acontecer quando menos esperamos.

Enquanto ela picava os legumes para o vinagrete, meu cavalo pisava no meu pé enquanto eu tentava amarra-lo na cerca. E de repente vi pessoas correndo e ouvi pessoas gritando, e corri para ver o que acontecia. Vi D. Francinha no chão. Seus lábios estavam ficando roxos. Algumas pessoas ao redor dela, outras correndo para pegar o carro, e ainda as outras que como eu apenas olhavam – e talvez tentassem entender o que acontecia. Talvez alguns já entendessem. Foi tudo tão rápido... Mas nunca me esqueço do olhar em seu rosto quando ela foi colocada no carro. Senti tanto medo. Nem me lembro se chorei naquele momento... Como choraria? Eu nem compreendia ao certo o que estava acontecendo.

Enquanto ela foi levada ao hospital eu e as outras crianças montamos em nossos cavalos e fomos andar ao redor do haras. Foi diferente de como costumava ser. Estávamos todos em silêncio, ouvindo apenas o casco dos cavalos baterem de encontro ao cascalho. Além disso, só ouvíamos, cada um, o seu próprio pensamento – talvez nem isso. As pessoas já sabiam que não haveria mais festa nenhuma. Eu ainda não tinha certeza. Pensei que pudéssemos comemorar outro dia, quando ela melhorasse. Não sabia eu que só a veria novamente no momento de seu enterro.

Passados minutos, talvez uma hora e um pouco mais, recebemos a notícia que não queríamos receber. Infarto fulminante. Não havia o que ser feito. Apenas aconteceu. Olhávamos todos para as comidas quase todas prontas para comemorarmos o aniversário de meu irmão, e tudo me pareceu mais triste, e ninguém nem sequer as tocou. O que fizeram foi guardar toda aquela comida para o dia seguinte. O céu até chorou naquele fim de tarde. Choveu. E como choveu. Acho que choveu o resto da noite.

Meus pais me mandaram para a casa de uma amiga para dormir lá. Lembro-me que chorei ao tentar dormir, e não dormi, e senti medo também. Eu ainda acreditava que os mortos poderiam aparecer para nós, e fiquei imaginando ela aparecendo na porta do quarto... Crianças... Ao mesmo tempo eu pensava porque as pessoas tem que morrer? Porque Deus não as salva? Briguei com Deus. Fiquei com raiva de Deus. Eu já sentia o vazio, a tristeza e a raiva naquele momento, mas o restante eu só sentiria no dia seguinte. É que se completaria o meu não entendimento sobre o que é a morte. A confirmação do fim, apenas.

Já no dia seguinte fomos ao seu enterro – antes dela eu havia visto uma pessoa apenas no caixão, mas vi de longe, não me atrevia a chegar perto. Não sei o que se passava pela minha cabeça, mas a ideia de se aproximar de um caixão me aterrorizava. Alguns foram vê-la a cavalo, outros foram de carro mesmo. Nem me lembro de que eu fui.

Ela vestia uma blusa rosa. Nunca pensei que uma pessoa morta pudesse ser tão bonita. Ela estava serena, parecia que tinha até um sorriso de canto de boca, assim tão simples e feliz como era a D. Francinha. E fiquei observando as flores em sua volta, e o seu cabelo como estava preso de uma forma muito bonita. Tudo na expectativa de ver algum movimento, mínimo, qualquer que fosse. Mas não. Eu só via o seu sorriso de canto de boca. E sem nem entender ou tentar entender, nem mesmo esperar, me vi chorando nos braços de meu pai. Sufocada em um choro contido, mas que me saía de algum modo.

E quando chegou o momento final, derradeiro, em que o caixão descia e as flores eram jogadas sobre ele, minha mãe pediu para meu pai me retirar de lá. Afogava-me na barriga de meu pai, num choro que nem eu sabia que podia chorar, pois eu sabia que havia perdido uma pessoa, mais que uma pessoa, uma pessoa que me era incrível e tão acessível! Eu entendi a partir daquele momento o que era morrer, e o que ficava da morte: ficávamos nós. Todo o restante daquela realidade, todo o restante daquela vida que se fora. Nem fiquei para ver cobrirem o caixão de terra. E desde então me disse que nunca mais ficaria até o fim de um funeral.

Fomos para o que costumava ser a casa dela. A casa daquela senhora adorável. Estavam lá todas as comidas do dia anterior. Nem lembro se comi. Sei que sentei no quintal e tudo já era sem graça, e eu não queria mais saber dos cavalos e nem das goiabas, acho que até as galinhas não queriam saber de nada. Fiquei lá sentindo uma ânsia não sei de quê. Sentindo o vazio e a confusão que se apossava da minha mente infantil. Pensei nisso por tantos dias seguidos... Voltei lá poucas vezes depois de sua morte. Não era mais a mesma coisa. Não tinha o mesmo cheiro, nem o mesmo gosto, menos ainda as mesmas cores. E toda aquela comida feita com tanto amor... Poxa, ela cozinhava para o aniversário do meu irmão! E não sabia ela que estaria cozinhando o almoço do seu próprio funeral.

E como tudo acontece quando a gente menos espera. Anos mais tarde, no mesmo dia. Dia cinco. Aniversário do meu irmão. Outra pessoa querida se despedia. Dessa vez eu estava distante, viajando, mas pude sentir a despedida... Ao menos não estava perto para me despedir. Não fui ao enterro. E se eu estivesse por perto eu não iria. E penso que isso me foi até bom. Às vezes parece que ele apenas viajou para algum outro lugar, e gostou tanto que resolveu ficar por lá. Já D Francinha, bom, D. Francinha ficou abaixo da terra com o seu adorável e incrível sorriso. Às vezes penso que ela poderia ter apenas viajado também.

Larissa Maciel
Enviado por Larissa Maciel em 03/07/2015
Reeditado em 03/07/2015
Código do texto: T5298580
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