Um episódio de iluminação
Ocorreu certa vez, surpreendentemente, em meio a uma partida de xadrez.
Era um jogo usual, em um momento comum, posição habitual; nada indicava uma particularidade especial contrastando aquele instante. Mesmo assim, eu me via adiando a jogada, gastando um tempo excessivo para a execução de meu lance, fato registrado pelo duplo relógio utilizado nos jogos de xadrez, do qual eu estava consciente, mas, que ainda assim não me afligia, dado o reconhecimento de que o tempo não era gasto inutilmente, mas na compreensão do jogo.
Enquanto o tempo passava as relações entre as peças iam se tornando cada vez mais claras, a posição ia sendo compreendia com nitidez, cada detalhe, de modo que o tempo se fazia necessário.
Em um certo momento, no entanto, algo surpreendente ocorreu quando, repentinamente, o tabuleiro se iluminou!
O fato transcorria em um clube de xadrez, em um ambiente clean amplamente iluminado com grandes lâmpadas fluorescentes. A sensação de iluminação do tabuleiro, no entanto, foi literal, parecendo ter recebido o foco de algum spot de luz. Conferi o ambiente à procura da fonte da iluminação, não encontrando nada que a justificasse; tornei então a contemplar o tabuleiro radiante, percebendo nele um brilho próprio. Constatei que as peças reluziam mais que o cenário ao redor, como se tivessem adquirido luz própria. Sorri de satisfação e saboreei o momento inusitado, tornando a mergulhar no jogo, constatando a surpreendente compreensão da posição que eu tinha conseguido alcançar.
Meu primeiro lance, óbvio e natural, poderia ser respondido de 3 maneiras, todas exigindo, em contrapartida, o mesmo lance preparatório para um sacrifício. Um movimento com um peão na retaguarda, forçando a debandada de um bispo do ataque adversário. A retirada da peça permitiria o sacrifício iminente.
A primeira alternativa de resposta do adversário seria brutalmente solapada pelo sacrifício de um bispo sobre os peões nas vizinhanças do rei, deixando-o exposto e vulnerável, possibilitando a retomada de material na sequência imediata, e a apreensão de uma segunda peça adversária posteriormente, recuperando um total de duas peças e dois peões em troca do bispo sacrificado, deixando, ainda, o rei absurdamente exposto a ataques; vantagem decisiva e avassaladora.
A segunda alternativa inimiga sugeria estratégia similar, ocasionando resultado análogo, embora exigindo 1 ou 2 lances adicionais, intermediários.
A terceira alternativa, mais complexa que as outras duas, permitiria uma gama maior de variantes que eu tratava de desvendar, uma a uma. Minha análise impunha uma correspondência entre as peças, de modo que cada uma das minhas “marcava” outra do adversário, de maneira análoga à marcação efetuada por jogadores de basquete, de modo que cada movimento adversário liberaria um ponto de ataque. Minhas respostas teriam que ser, todas elas, igualmente precisas, já que meus movimentos também libertariam as peças dos adversários, todas elas vigiadas pelas minhas.
Gastei enorme tempo analisando as inúmeras linhas que se descortinavam em decorrência da terceira resposta, algo em torno de uma hora. Longe de sentir qualquer cansaço em decorrência da concentração, a iluminação me nutria e alegrava. Nunca tinha percebido o tabuleiro com tão absurda clareza, nunca me tinha sido tão fácil e natural analisar as diversas linhas de jogo possíveis, sem nenhum esforço.
Jogadores iniciantes devem esforçar-se bravamente para desvendar combinações decorrentes de escaramuças táticas. Após certa experiência, passam a esperar uma espécie de manto tranquilizador que costuma clarear as combinações tornando seus resultados compreensíveis sem nenhum esforço. Essa espécie de transição capaz de reduzir combinações complexas a linhas triviais ocorre naturalmente, sem esforço, fato que surpreende o neófito ao presenciar, nele mesmo, a substituição do fervor investido na concentração extrema esvaziado repentinamente, ao desvendar com clareza o segredo da combinação em pauta. Penso agora que a iluminação descrita aqui tenha certa analogia com esse evento comum, mas correspondendo a um nível acima, a uma compreensão múltipla, na qual linhas de jogo muito diversas são desvendadas simultaneamente, envolvendo complexidade muito superior à das análises de combinações simples.
O tabuleiro continuava pairando iluminado, gerando uma atmosfera mágica na qual eu permanecia imerso.
Enquanto analisava as diversas linhas, sorvia a sensação agradabilíssima advinda da iluminação, deixando o tempo passar sem nenhuma preocupação. Tinha um tempo limite de duas horas para executar todos os meus lances, e a obrigação de anotar todos eles em um papel impresso, a planilha. Tal obrigação seria abonada, eliminada, quando me faltassem apenas 5 minutos para o término de meu tempo de jogo. Faltando pouco mais que isso, planejei minha estratégia de ação: sem precisar anotar meus lances, e tndo pouco tmpo para executar todos eles, alternaria respostas imediatas e pré-planejadas com decisões mais custosas, nas quais me permitiria o gasto de alguns segundos. O plano seria necessário apenas na hipótese de que o adversário executasse a terceira resposta, e que prosseguisse na única linha da complexa posição que eu não consegui desvendar até conclusão definitiva. Apesar dessa única dúvida, esperei que o ponteiro do relógio adentrasse a região dos 5 minutos finais, confiante na vitória. Considerei que só poderia perder aquele jogo se viesse a perder a concentração.
Ao perceber que o relógio já me liberava da anotação da posição, recapitulei todas as deliberações e efetuei meu lance, óbvio e natural, para a decepção dos circunstantes, os outros participantes do torneio, para os quais minha delonga inusitada tinha chamado a atenção. Haviam ficado intrigados com minha longa demora, conjecturando que eu me sentisse ameaçado por alguma ameaça do adversário, conjectura desmentida por todas as análises que sugeriam uma posição morna. Aos olhos dessa plateia, a realização do lance óbvio e natural sugeria que eu tivesse estado analisando e me precavendo de algum fantasma, ameaça irreal que por vezes assalta os jogadores. Além de natural e óbvio, meu lance revelava uma candura quase enternecedora; consistia em um aparentemente anódino avanço de peão, assemelhando-se ao malogro de uma explosão anunciada, anticlímax constrangedor.
Não anotei o lance, causando protesto do adversário; ergui a mão em solicitação do árbitro, mas nada falei a nenhum dos dois, ação antipática e antissocial, percebo, justificada, ou ao menos abrandada, pela concentração extrema que o momento exigia.
Para meu desagrado, após talvez 1 minuto, gasto mais pela perplexidade ante a naturalidade do lance que pela dificuldade de ameaça que parecia não haver, o adversário optou pela primeira alternativa, executando o lance mais óbvio, mas também mais fraco. Seria abatido em poucos golpes, esfrangalhado. Eu tinha gastado uns 2 ou 3 minutos se tanto, para refutar essa resposta que, de certo modo, desmerecia a minha análise. Esmoreci em vista disso, entristecendo-me com a fraqueza do lance. Balancei a cabeça em desagrado, decepcionado com a defesa inepta.
Executei então o lance intermediário crucial, o ataque na retaguarda desalojando peça de ataque adversária e abrindo caminho para o sacrifício. Após breve análise do lance impositivo, o adversário retrocedeu a peça, conforme esperado. Convém ressaltar que embora a entrega desse bispo pelo adversário ocasionasse, em condições usuais, a perda do jogo, consistia na melhor tentativa, ainda que precariíssima, de defesa da posição, dada a exiguidade de tempo disponível para mim no momento. Toda a minha longa análise pressupunha a retirada do bispo. Tal consideração me levou a gastar segundos preciosos na análise da resposta, em outras circunstâncias, suicida.
A resposta do adversário selou sua sina. Até então, ele não havia percebido o desmoronamento brutal que o sacrifício ameaçava. Condições psicológicas, creio, decorrentes dos lances anteriores, aparentemente anódinos, subsequentes à longa demora tinham predisposto o adversário a esperar banalidades. Esse terceiro lance também impunha resposta unívoca, tornando obrigatória a tomada do bispo sacrificado, decisão tomada com rapidez, provavelmente na esperança fútil de não me permitir tempo extra.
Em algum momento, talvez no lance anterior, o adversário reiterou seu protesto relativo ao fato de eu não anotar meu lance, denúncia objetada pelo árbitro que o esclareceu se referindo à abolição da obrigatoriedade de anotação durante os 5 minutos finais do jogador. Ouvi as interpelações como se à distância, conseguindo manter daquilo um nítido distanciamento, e minha concentração total no tabuleiro.
Não lembro que lance executou o adversário em resposta, mas, usualmente, sacrifícios impõem resposta precisas, frequentemente únicas, e a sorte já estava lançada. Respostas únicas, impostas pelos meus ataques subsequentes, já previamente delineados, e executados de imediato, não foram capazes de impedir a retomada da peça sacrificada, nem a iminência da captura de outra, além dos peões, e da exposição do rei, e em vista de minhas respostas já medidas, precisas e imediatas e brutais.
O adversário capitulou, enquanto o tabuleiro permanecia magicamente iluminado por luz dourada.