MEMÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA

TROCA DE NOME

Deus me concedeu o privilégio de nascer numa segunda-feira ensolarada do dia 24 de abril de 1972, no Sitio Chã de Areia, pertencente ao município de Pilar, na Paraíba.

Fui o quinto filho da dona de casa Maria José da Costa Silva e do agricultor Severino Honorato da Silva. Mesmo dispondo de pouco recurso financeiro, meus pais souberam nos educar com dignidade para vivermos neste mundo como pessoas honradas e tementes a Deus.

Honra-me muito ser filho de agricultor, pois graças à convivência com o povo da roça aprendi a amar e a respeitar as pessoas simples do campo.

Trago doces recordações do Sítio Chã de Areia, pois foi lá onde começou a minha história, que finalmente cheguei para este mundo de aventuras, sonhos e ilusões.

Em meu nascimento aconteceu um fato curioso protagonizado por minha avó paterna, Dona Etelvina, e a minha mãe, Dona Maria José, com relação ao nome que deveriam colocar em mim. A minha avó tinha combinado que quando chegasse a hora de eu nascer alguém fosse avisá-la, pois gostaria muito de assistir ao nascimento de seu novo neto que, segundo a minha mãe, deveria chamar-se Fernando e não Antonio como haveria de ser.

Porém, minha mãe, mulher de forte personalidade, não querendo, talvez por pudor, a presença constrangedora de sua sogra na hora do parto, não mandou avisá-la que já tinha entrado no doloroso processo de dá a luz ao seu novo filho, e que a única parteira da região, Dona Josina, já estava a postos, pronta para me trazer ao mundo!

Entretanto o parto se complicou, as horas se passaram e eu não dava o ar de minha graça. Minha mãe angustiada gemia em meio às contrações. Meu pai, muito nervoso, saiu de casa discretamente e foi chamar minha avó para que, com toda a sua experiência, ajudasse de alguma forma em meu nascimento. Minha mãe exausta, já não se importara com a chegada de minha avó, pois não sabia mais o que fazer para dá a luz a aquele menino cujo nome deveria ser Fernando. Eu imagino que não estava gostando nadinha de ser chamado de Fernando, nada contra o nome Fernando, mas era porque eu queria mesmo era ser chamado de Antonio! Por isso estava dando aquele trabalhão para nascer e, certamente, argumentava, em meio às águas turbulentas da placenta: com esse nome eu não nasço!

Foi quando minha avó entrou no quarto e, do auge de suas superstições, disse:

“Menino que demora a nascer

só uma esperança lhe resta

por o nome dele Antonio

que ele nasce de pressa!”

O verso foi engraçado, mas eficiente. Minha mãe, sufocada pelas dores, não contou história e replicou:

“Se é pro menino nascer

e esse sofrimento acabar

então a partir de agora

Antonio vai se chamar”!

Não demorou muito e eu nasci branquinho como lã de algodão e de olhinhos azuis como da cor do céu. Mas minha alegria durou pouco, pois minha recepção não foi como eu esperava; que negócio é esse de apanhar no primeiro minuto de vida?...

Meu pai sorria aliviado pela chegada de mais um menino macho que, segundo os seus cálculos, serviria de mão de obra gratuita para ajudá-lo no roçado quando crescesse.

Minha avó, com a sensação de quem tinha realizado um grande beneficio para humanidade, também sorria. A parteira, após cortar meu umbigo, colocou-me ao lado de minha mãe para minha primeira refeição fora do ventre. Finalmente, satisfeito, olhei sorrindo para a minha avó que se aproximara para ver com quem eu me parecia, e antes que ela me balbuciasse alguma palavra o que eu gostaria mesmo de dizer era: valeu vovó! Muito obrigado pela sugestão, pois o que eu gostei mesmo foi de ser chamado de Antonio!!

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NOSSA INFÂNCIA

Durante nossa infância, como não tínhamos condições de comprar brinquedos de loja, então fabricávamos os nossos próprios brinquedos.

Utilizávamos pedaços de tábua, latas de óleo de comida, chinelos velhos, pregos e barbante. Tudo isto se tornava em matéria prima para a fabricação de carros, caminhões e tratores. E quando não conseguíamos no lixo do quintal todo este material, bastava encontrar uma simples garrafa de água sanitária vazia, um pouco de terra para enchê-la, um pedaço de arame e um barbante para puxá-la, e... pronto! Estava feito nosso novo brinquedo, e logo começávamos a apostar corrida numa grande pista imaginária de Fórmula-1.

Uma das minhas especialidades era a fabricação de anzol com arame de caderno que eu amarrava em uma vara de memeleiro com linha de carretel tirada da máquina de costura de minha mãe. O anzol artesanal era para pescarmos piaba no açude de meu avô, que ficava em uma vazante no Sítio Chã de Areia. Mas, para a minha surpresa, muitas vezes era somente um cágado enxerido que vinha quebrar o silêncio da manhã e a tranqüilidade das águas barrentas, com a sua intrepidez que acabava com nosso anzol, torando a linha ou quebrando a varinha no meio.

Que tempo maravilhoso foi aquele!... Éramos felizes com tão pouco... Tínhamos o amor de nossos pais, um teto para morar e um paraíso para brincar...

Tínhamos motivos de sobra para sermos felizes, para sonharmos todos os dias com novas e vibrantes aventuras.

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SOLIDADE

Solidade foi para nós como uma segunda mãe. Na nossa infância era ela quem preparava nossa alimentação, cuidava de nossa casa, de mim e de meus irmãos como se fossem seus verdadeiros filhos.

Quando minha mãe quis queimar a língua de meu irmão Marcone com um tição de fogo porque ele era um chamador de nomes feios, foi Solidade quem impediu que ela consumasse seu intento. Na realidade, não sei se minha mãe realmente pretendia queimar a língua de meu irmão ou simplesmente dar-lhe um susto. O fato é que Solidade estava sempre atenta para nos defender na hora em que a coisa ficava séria. Solidade era mais do que nossa advogada, era nosso anjo protetor e minha mãe tinha respeito por ela.

Solidade era estéril, não podia ter filhos, talvez por isso dedicava-se tanto aos filhos das famílias nos lares onde trabalhava.

A verdade é que as manhãs, as tardes e as noites tinham mais graça com a presença bonachona e solidária de Solidade. Sempre falante, sempre disposta, sempre bem humorada. Ela parecia uma personagem dos romances de José Lins do Rego, Jorge Amado e Monteiro Lobato. O brilho de seus olhos, quando nos via, era mais radiante que a luz do sol nas manhãs e das estrelas nas noites.

Solidade era muito generosa para conosco. Quando estava fazendo comida de milho, dava-nos, às escondidas, colheres de angu quente pelo buraco da parede para minha mãe não ver. Cantava-nos lindas cantigas que aprendeu nas brincadeiras de cavalo marinho e coco de roda. Catava pacientemente os piolhos de nossa cabeça e ainda fazia cafuné de um jeito que só ela sabia fazer. Sabia contar estórias de príncipes e princesas. E ela arrumava sempre um tempinho para entrar na nossa brincadeira.

Foi ela quem certa vez convenceu minha mãe para nos deixar acompanhá-la até a feira do Pilar, numa manhã de sábado. Lembro-me como se fosse hoje... Passamos a madrugada acordados. Ansiosos. Foi a nossa primeira aventura fora do Sítio Chã de Areia. Pois nunca tínhamos visto uma feira de perto. Que maravilha!

Mas um dia veio a triste notícia: Solidade iria se mudar para a Serventia do Pilar. Meu pai já tinha, inclusive, providenciado uma casa para ela e Seu Júlio, seu marido, morarem. Não nos disseram o motivo...

Um silêncio de morte tomou conta do Sítio Chã de Areia. O tempo nublou. Até os passarinhos esconderam-se. Emudeceram. Meu Deus! Que tragédia para o mundo mágico de nossa infância foi a saída de Solidade.

A sua partida, em cima de uma caminhoneta, com poucos móveis, foi dolorosa de mais. Um pedaço de nós partiu junto com ela... E ela ficou para sempre habitando as nossas lembranças!

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A FEIRA DO PILAR

A nossa infância foi uma aventura extraordinária! Nunca me esquecerei da primeira vez que fui à feira do Pilar, acompanhado por meus irmãos e tendo como guia Dona Solidade que morava em nosso sítio e que era como uma segunda mãe para a gente.

E lá fomos nós naquela manhã de sábado, todos a pé, bem cedinho, rumo a tão sonhada feira do Pilar. Levando topadas pelo caminho, e cada qual com um desejo no coração. O meu sonho era o de comprar uma balinheira para caçar passarinho na mata de Seu Edrísio.

Depois de quarenta minutos de caminhada estávamos chegando na Estação que fica na chegada da cidade. Onde lá, em pé na calçada de um galpão da Rede Ferroviária, avistamos uma mulher pretinha, conhecida por Chibata Preta. Ela cozinhava a sua refeição matinal ali mesmo, em uma lata velha, suposta sobre duas pedras, naquele fogo de lenha improvisado no chão da rua. Confesso que fiquei com medo. Foi ai que apressei o passo.

Já estávamos pertinho da rua grande, pois só restava agora dobrar na esquina do Silva, passar na ponte, e pronto!... Finalmente a feira!!! A feira com todos os seus encantos! E ela era do jeito que eu imaginava, com muitos brinquedos pendurados nos bancos cobertos de lona, brinquedos expostos no chão da rua, brinquedos também nas lojas... Confesso que nunca vi tantos brinquedos juntos. Infelizmente meu dinheiro só dava para comprar mesmo uma balinheira.

Depois, em nosso regresso, ainda tomamos um refresco geladinho, com pão doce, na mercearia de Seu Silva.

E, sem tirar o olho um só minuto balinheira, voltara feliz para casa... Atirando pedras nos socós que mergulhavam no Riacho do Figueiredo.

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MARIA MAGRA

Maria Magra era casada com um sertanejo e tinha três filhos graúdos. Vieram morar em uma casa de barro no Sítio Chã de Areia, num dia de sol, quase sem nuvens no céu.

Ela seria muito bem vinda ao paraíso de nossa infância, àquele recantinho especial do Pilar, não fosse para provocar inferno na vida de Solidade.

Maria Magra era como uma cobra peçonhenta destilando seu veneno por onde passava. Foi a pessoa mais invejosa que já conheci! Ela não suportava ver a alegria de Solidade trabalhando em nossa casa e sendo considerada como uma pessoa da família.

Solidade, diariamente, entrava e saía de nosso lar, para realizar as atividades domésticas, porém ela nunca saía de nosso coração. Além de trabalhar com muita responsabilidade, Solidade tinha outras virtudes que nos encantava. Ela trazia consigo a simplicidade da vida. Sabia o segredo de ser feliz com tão pouco. Ninguém conseguia ficar de mau humor por muito tempo na presença agradável de Solidade. Ela trazia consigo o dom da descontração e da alegria.

Mas tudo isso mudaria com a chegada de Maria Magra em nosso sítio. Pois ela não suportava ver outra moradora desfrutando da confiança e do afeto de toda nossa família.

Não demorou muito e Maria Magra aproximou-se de minha mãe para semear as suas sementes do mal.

- A senhora está dando muita confiança a Solidade. Ela até viaja sozinha com seu marido para fazer compras no Pilar. Tenha cuidado, pois homem é bicho danado. E Solidade é uma morena muito bem feita. Olhe, de onde eu vim, meu patrão largou a esposa pra se amigar com uma empregada!... Não brinque não que a senhora está correndo um grande risco! A esperta conquistou até seus meninos, parecem que eles gostam mais dela do que da senhora.

A realidade é que depois dessa conversa a minha mão não foi mais a mesma. Olhava para Solidade com um olhar de receio. Observou como ela era bem feita de corpo mesmo. Começou a observar o comportamento dela quando estava na presença de meu pai. E começou a ver coisas que não existiam e a fazer julgamentos equivocados.

- Severino você pare com tanta liberdade com Solidade! Eu agora estou enxergando o que não via. Meu Deus como eu fui tola!

- O que é isso, mulher? Você andou bebendo escondida foi? Solidade é para mim como um homem. Ela sempre me respeitou e eu respeito ela também.

Mas cada dia, cada semana que passava, Maria Magra envenenava cada vez mais a cabeça da minha mãe contra Solidade. Até que um dia minha mão não agüentou e disse para meu pai: “Severino, você decida. Ou você manda Solidade embora do sítio ou quem vai embora sou eu!”.

A minha mãe falou sério. Certo dia arrumou suas roupas para ir embora. Meu pai, para por fim a aquela confusão, então concordou em mandar Solidade embora. Mesmo sabendo que ela era inocente.

Solidade chorou muito com a calúnia de Maria Magra. Ela sabia que aquela enviada do Diabo estava por trás de tudo isso. Mas não podia fazer nada. Minha mãe acreditara em tudo que ela inventou.

Mas o que mais machucou o coração de Solidade foi a nossa separação. Deixar-nos, eu e meus outros três irmãos pequenos, tão apegados a ela, sem os seus carinhos... sem os seus cuidados... sem o seu fraterno amor...

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NA ESCOLA

Aos seis anos fui estudar, juntamente com meu irmão Evando, na escolinha de Dona Antônia Tonê que ficava em sua própria residência no Sítio Figueiredo.

Dona Antônia era uma professora severa, afamada por ter ensinado várias gerações; conhecida por fazer seus alunos aprenderem com rapidez e disciplina, à base da palmatória e dos castigos no canto da parede, pondo de joelhos sobre caroços de milho seus alunos desobedientes.

Foi com ela que aprendi a escrever minhas primeiras palavras e a responder, tremendo de medo, as questões da Tabuada. Depois, no ano seguinte, fomos estudar com uma moça de nome Maria José Dias, conhecida por “Pepeu”, por quem quase me apaixonei! Pois ela pegava com muito carinho em minha mão na hora de ensinar-me a escrever corretamente.

Nossos pais não nos matricularam no Grupo Escolar de Chã de Areia, talvez por receio, por trauma, pois tinha perdido recentemente minha irmã Elenilda, atropelada por uma cômbi, quando ela retornava da escola, um grupo escolar que ficava próximo do Rio Una, com a sua professora Dona Antônia Tonê e seus colegas.

A nossa última professora do sítio foi Maria José Matos que nos ensinou do terceiro ao quarto ano primário.

E finalmente fomos estudar em Pilar, no Grupo Escolar Dr. José Maria, localizado próximo a igreja matriz da cidade. Sentimos muita dificuldade para adaptarmos ao comportamento dos colegas da rua, às matérias novas e principalmente a estudar com vários professores.

Quase não falávamos na sala de aula. Só abríamos a boca para responder “presente”, na hora da chamada. Até que um dia resolvi mostrar o meu talento de desenhista, eu desenhava e meu irmão pintava, então foi ai que nos tornamos, talvez, os alunos mais populares da escola!

A sexta e a sétima série estudamos no Colégio de 1º e 2º graus José Lins do Rego. Onde tivemos excelentes professores como José Bonifácio, Teixeira, Dona Severina Batista, Valter, Dona Ana, entre outros...

Porém, nesse novo colégio, éramos chamados de matuto a toda hora por um colega de nome Cícero. Ele escondia nosso material, causando-nos muito constrangimento. Até que um dia não suportei mais vê-lo chamar meu irmão de matuto, então lhe ameacei dizendo: se você chamar meu irmão mais uma vez de matuto você vai ver uma coisa! Mas ele não quis saber e replicou: matuto, matuto, matuto!!! Foi aí que lhe armei um soco e quando fui atingi-lo, ele esquivou-se e me devolveu um direto de esquerda na testa que eu quase caí no chão. Então gritei: pare, pare, pare! Que eu não quero brigar mais não! E caí num pranto incontrolável, sentado na minha cadeira.

Meus colegas correram para avisar a professora. Os alunos das outras salas vieram correndo para saber o que estava acontecendo. Levaram-me à diretoria para colocar gelo sobre um calombo azul que nasceu em minha testa. Aquilo parou o colégio.

A diretora, Dona Didi, chamou seriamente a atenção de Cícero. Ameaçou-lhe expulsar do colégio e aplicou-lhe uma suspensão. Confesso que uma coisa boa aconteceu nisso tudo, foi que ele nunca mais nos chamou de matuto! Alguns anos depois fizemos as pazes e nos tornamos amigos.

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A CHEGADA DO INVERNO

Quando chegava o inverno a alegria tomava conta do Sítio Chã de Areia. Todo mundo se animava para o plantio. Meu pai selecionava as sementes. Os seus olhos brilhavam. Era a esperança de um ano bom, diferente de 1983 onde ele perdeu tudo com a seca. 84 seria diferente. Um cheiro de prosperidade pairava no ar... Mês de fevereiro e a terra já estava alagada!

Chovia o dia todo e adentrava pela noite. As cacimbas sangravam. As águas barrentas tomavam conta dos açudes. Até o Rio Una roncava com a força da enchente!

Os homens, os passinhos, os sapos, os grilos, todos cantavam, pulavam, se alegravam com a chegada do inverno. E contemplando aquele espetáculo da natureza, vendo a chuva cair com intensidade, formando poças d’água pelo chão, pedíamos aos nossos pais para tomarmos banho de chuva e quando a resposta era positiva a festa estava feita! Sim, era uma verdadeira aventura! Corríamos no terreiro encharcado, cheio de lama, onde escorregávamos de propósito. Que nos importava a queda? Estava chovendo de verdade e aquele era um momento singular em nossa vida. E no final do banho era que vinha a melhor parte: íamos para debaixo de uma bica, nos banhar em uma correnteza de água cristalina, com o mesmo prazer de quem estava se banhando debaixo de uma cachoeira.

Aquele é que era um tempo bom... Infância... Cheiro de inocência no ar... Medo gripe? -nem pensar!

“A chuva fina é que gripa,

A grossa não gripa não”;

Então a gente brincava

Cantando esse refrão!

A chuva fina é que gripa,

A grossa não gripa não;

Pois quem tem medo de chuva

Não sabe dessa emoção!

Somente a chuva fininha

É que gripa no sertão;

Os pingos da chuva grossa

Lava o corpo e o coração!

Assim a gente brincava

Cantando esse refrão;

A chuva fina é que gripa,

A grossa não gripa não.

Mas nem tudo era somente festa quando o inverno chegava no Sítio Chã de Areia, também tínhamos que ajudar nossos pais no roçado, plantando sementes de inhame, milho e feijão. E aquelas cestas cheias de sementes de inhame como doíam em nossas mãos! Sem falar nas formigas pretas que mordiam nossos pés incessantemente.

Descobri desde cedo que não tinha a mínima vocação para a agricultura. Meu pai dizia que eu era doente de preguiça. Até meu avô pegava no meu pé!

–Menino vá buscar outra cesta de semente para esse canto do roçado!”

–Ai, ai, ai! Meu avô!... Que dor na minha canela!

Então eu caía no chão e meu avô dizia sorrindo...

–Esse menino ainda morre de preguiça!

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MEU AVÔ – UM CONTADOR DE ESTÓRIAS

Meu avô morreu aos 84 anos de idade. Seu nome era Honorato Francisco da Silva, casado com Dona Etelvina, nascido e criado no Sítio Chã de Areia. Não sabia ler nem escrever, porém detentor de uma sabedoria incrível! Pois sabia como ninguém da vida do campo. Conhecia o solo apropriado para cada lavoura; sabia a hora exata de plantar cada grão e de colher cada fruto. Observava a natureza e aprendia com ela. Conhecia bem os sinais de um ano bom de inverno e de um ano seco. Era experimentado a ter fartura e escassez. E apesar de dispor de pouco recurso, de ser um simples sitiante, era honrado e respeitado em toda a região.

Porém a virtude de meu avô que eu mais admirava é que ele sabia contar estórias como ninguém. Sim, meu avô era um grande contador de estórias e nós éramos a sua platéia preferida.

Toda noite sentávamos na calçada de sua casa para ouvi-lo contar as aventuras de Camões e Pedro Malazarte. A noite ficava mais bonita... As estrelas brilhavam mais... As nuvens negras se dissipavam e a lua radiante refletia sobre nós a sua luz de prata.

Naquela época não tínhamos televisão. A energia elétrica ainda não tinha chegado ao Sítio Chã de Areia. Então ficávamos, um amontoado de meninos e meninas, netos e filhos de moradores, sob o alpendre de sua casa, sentados no chão em sua volta, para ouvir atenciosamente mais um capítulo do seu vasto repertório de estórias, causos e adivinhações. E quando ele começava a falar ficávamos de olhos arregalados e de orelhas em pé, encantados com cada palavra que saia de sua boca. Era como se ele se transformasse num capitão de um grande navio e nós fossemos a sua tripulação. Viajávamos com ele por oceanos distantes... Éramos crianças ansiosas por aventuras que despertassem a nossa imaginação e alimentassem os nossos sonhos.

Meu avô era um homem de pequena estatura, mas quando começava a contar estórias era como se ele crescesse! Crescesse tanto que nos envolvia com os seus gestos e suas emoções... Chorávamos quando ele chorava; sorríamos quando ele sorria! Ainda hoje guardo fragmentos de estórias ouvidas da boca de meu avô. Foi ele quem, mesmo sem saber, despertou em mim o gosto pela literatura.

Meu pai me falou que meu avô era pra ser um homem muito rico por tanto que trabalhara, e só não foi por causa de sua paixão pelo jogo, pois ele não resistia aos convites dos amigos que vinham lhe buscar para passar a noite nos cassinos de Itabaiana. Meu avô até velhinho ainda mandava um morador fazer aposta no Jogo do Bicho, na venda de Néco Paulo que ficava na Encruzilhada. Talvez ele ainda sonhasse em conseguir no jogo o que não consegiu trabalhando durante toda a vida. Quem sabe pensando em dá uma vida melhor para os seus filhos como herança. Mas a verdade é que o jogo não compensa e tudo não passou de ilusão.

Sinto muita saudade de meu avô... Do seu olhar sereno, chapéu de palha na cabeça, calça arregaçada no meio da canela, pés descalços e uma peixeira pendurada na cintura.

“Bênça a vô?”... “-Deus te abençoe e te faça feliz!”. Meu avô não era um homem religioso, porém era temente a Deus. Quando ele estava doente para morrer mandou me chamar, queria me ensinar umas palavras, recomendando a sua alma a Deus, para eu dizer na hora em que ele estivesse morrendo. Não me lembro da frase. Lembro-me apenas de várias pessoas visitando-lhe na véspera de seu falecimento. Cedo da noite, o candeeiro aceso na sala, ele sentado em uma rede e todos em sua volta prestando bastante atenção no que ele dizia. E ele contava as suas estórias, nem parecia que estava doente para morrer.

E naquela noite lá estava eu, contemplando o meu avô se despedir da vida. Vi meu avô sorrindo, contando os seus gracejos para os seus amigos que viera lhe fazer, talvez sem saber, a última visita.

Meu avô era um homem forte. Admirável. Se ele morresse naquela hora, sem dúvida alguma, morreria feliz. Pois partiria fazendo o que ele mais gostava de fazer, que era “contar estórias”.

No dia seguinte meu avô morreu e foi sepultado no cemitério de Pilar. Num dia chuvoso, como nos dias que ele mais gostava. A natureza se despediu de meu avô também fazendo a sua homenagem.

Eu nunca me esquecerei da figura marcante de meu avô.

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Estas crônicas fazem parte de meu livro NO CHÃO DA MEMÓRIA (Crônicas e Poesias) Publicado no clube de Autores, neste link:

https://www.clubedeautores.com.br/book/179994--No_Chao_da_Memoria#.VZVOgRtVgoI