Uma Volta
Ela já tinha passado na frente da televisão umas dez vezes. Cada hora um motivo aparentemente diferente, quando não o mesmo da vez anterior, mas que tinha esquecido de concluir. Ele respirava fundo, pois sabia o que aquilo queria dizer: Ela queria dar uma volta.
Ela voltou novamente, espanou o pó da mesinha da frente e reclamou do calor. Ele apenas concordou e disse que era culpa do aquecimento global. “Deve ser.” – respondeu ela espanando o parapeito da janela.
Minutos depois, voltou. Nas mãos segurava uma taça de pudim. Ele queria pedir um pedaço, mas tinha que agir calmamente. Pedir um pedacinho daquele pudim poderia ser o estopim de uma guerra interna naquela casa. Uma guerra que duraria uns vinte minutos, com intervalos e direito à prorrogação. Uma guerra que traria à tona todos os assuntos mal resolvidos nos seis meses de casamento, mais os cinco de namoro. Preferiu aguar. Pode sentir o gosto do pudim, mas preferiu não gerar polêmica desnecessária.
Ela terminou o pudim e respirou fundo. Estava aparentemente satisfeita. Ele sorriu. Talvez estivesse mais calma. Talvez o pudim tivesse a acalmado. Mas se enganou. Ela voltou até a sala e ficou acariciando o lóbulo de sua orelha. Ela sabia que ele odiava aquilo. Mas se reclamasse, seria chamado de monstro. E ouviria: “Nunca vi isso! Nunca vi! Uma pessoa que num gosta de carinho!”. Ele a conhecia bem. E não é que ele não curtisse um cafuné, ou uma leve carícia em volta de seus mamilos. Porém, havia momentos para tudo, e, naquele instante, ele só queria dormir assistindo à novela.
- Muito calor dentro de casa.
- Tá sim. – respondeu ele entre os dentes, e sem abrir os olhos.
- Nada pra fazer.
- Hoje tem filme na Globo. Vão repetir Anjos da Lei.
- Filme bobo.
-Ah, você gosta do Jim Carrey... Então menos, tá? Bem menos.
Ao proferir as palavras “...Bem menos.” Ele parou. Fez a cara de um jogador quando perde um pênalti, aos 45 do segundo tempo, e tinha a chance de virar o jogo e classificar o time. Visualizaram? Pois é. Levou as mãos a cabeça, deu um soco no sofá, e apenas aguardou ela começar a reclamar.
Não deu outra.
“Monstrooooo! Precisa dar patada? Precisa me chamar de idiota?”
- Mas eu não...
-E precisa chamar? Precisa? Cruz credo! Pelo amor de Deus... O que está havendo? Heim? Quer me contar alguma coisa?
- Amor, num tá havendo nada...
- Num tá? Então porque motivo me trata assim?
-Eu me excedi...
E a discussão durou por quase duas horas, fora um recorde nesse tempo juntos. Ela falou sobre os convidados do casamento, reclamou da mãe dele, e a mania de ligar à cobrar do Maranhão. E reclamou até do ano passado, quando ele chegou com a cueca virada do avesso.
Ele ouviu tudo olhando para a tv. Pensando que se ele tivesse a chamado para dar uma volta, tudo poderia ter sido melhor.
Era só terem dado uma volta.