CENA CARIOCA
CENA CARIOCA
Manhã de outono, lindo dia de sol. Termino minha caminhada no calçadão e me dirijo ao quiosque para tomar água de côco com todas as promessas de sais minerais, carboidratos, proteínas, fibras, ferro, hidratação, etc. Respiro fundo, sinto-me bem: mais um dia de dever cumprido com meus exercícios. Enquanto espero que abram o côco, escuto uma voz de moleque atrás de mim:
_ Tia, me paga aí um lanche!
Desestressada e de bom humor, resolvi fazer o gosto do menino, que aparentava cerca de doze anos de idade. Vindo da classe carente, apresentava corpo franzino e cabelos muito desalinhados. A roupa, grande demais para seu tamanho, denunciava o jeitinho criativo, próprio dos necessitados.
_Diga aí o que você quer comer.
A despeito de seu aspecto desfavorecido, o garoto tinha algo peculiar e atrativo em seu semblante que só encontro em pessoas dotadas de uma forte auto-estima.
_ Hoje quero algo especial. Vê aquele quiosque de lá? É ali que vende o melhor cachorro quente da praia de Copa. Se a tia não se incomodar, faça o favor de ir até lá comigo.
Pega de surpresa, minha primeira reação foi a de pensar que aquele garoto era muito folgado. Ah, não iria lá e pronto! Ele que comesse o que tivesse neste quiosque aqui, ora bolas! Brinquei:
_ Tu queres mesmo que eu vá lá naquele quiosque da esquina, meu rei? Queres que eu te sirva também?
_ Que te custa, tia? Se vai fazer um bem, faz logo por completo!
Nova surpresa. Aquele pirralho conseguiu colocar-me em cheque comigo mesma. Malcriado, como ousa? Porém, como estava em meus melhores humores, resolvi aceitar o desafio e ver até onde ele me levaria.
_ Tá legal! Espere que eu termine meu côco e vou lá contigo.
_ Não se apresse tia, tenho todo o tempo do mundo! – disse sentando-se numa cadeira e entoando uma música pop qualquer.
Chegando ao referido quiosque, disse para o atendente:
_ Prepara aí o melhor cachorro quente da casa pro meu amigo aqui!
O meu novo amiguinho, no entanto, já havia se acomodado, confortavelmente, debaixo do guarda-sol, descansando as pernas em cima de outra cadeira. Quando me dei conta, já estava fazendo o papel de garçonete dele.
_ É só cachorro quente que você quer?
_ Claro que não, tia. Manda ver uma fanta laranja bem gelada e me traz um copo com gelo e limão.
_ É pra já!
Não entendia porque, mas estava gostando daquele papel e procurei servir bem ao meu nobre cliente – afinal, clientes têm sempre razão, não é mesmo? Trouxe a fanta bem gelada e o copo com gelo e limão que ele pediu.
_ E aí, mais alguma coisa?
_ Tia, já que tu tá na empolgação, me traz um guardanapo para eu forrar a mesa que tá meio suja. Ah, sim, e fala pro cozinheiro que eu não gosto de cebola no molho. Só ketchup, maionese e mostarda. Se tiver batata palha, também pode ser.
Dado o recado, esperei junto com ele, sentada ao seu lado.
_ Como é seu nome?
_ José Washington da Silva Neves, ao seu dispor!
_ Cadê sua mãe e seu pai?
_ Minha mãe tá em casa, que rua não é lugar de mulher. Meu pai, por aí, catando lata pra fazer uma grana extra.
_ E você, não vai à escola?
_ Sempre que posso, tia. Hoje não dá, porque tive que dar um apoio ao velho. Catei umas latinhas do Posto Seis para cá. E ele me liberou pra descansar. Depois desse lanche, volto ao trabalho.
Seu olhar era de adulto e seu discurso, de responsável. Senti um misto de carinho e admiração por ele, mas uma ponta de preocupação por seu futuro e muita indignação por nosso sistema perverso e seus dirigentes não oferecerem oportunidades para meninos como aquele.
_ O que é que você quer ser quando crescer?
_ Quero ser forte e trabalhador feito meu pai, tia. Ah, sim, e ter uma mulher bonita pra ficar em casa e criar meus filhos. Penso também em ganhar uma boa grana para trazer a patroa pra comer esse cachorro quente aqui comigo todos os domingos. E tu, tia? Tu trabalha?
_ Não tanto quanto você!
_ Mulher tem que trabalhar em casa, tia. O homem é que vai pra rua e faz o serviço mais pesado.
Terminou de comer seu cachorro quente, limpou a boca com o guardanapo, espreguiçou-se e cantarolou trecho de outra música pop qualquer.
_ Valeu, tia. O próximo fica por minha conta e eu te convido!
_ Valeu, José Washington. O prazer foi meu!
Fiquei olhando seu pequeno vulto desaparecer por entre outros muitos vultos do calçadão. Lá se ia mais um brasileirinho de boa índole, trabalhador e cheio de esperança para com o futuro. Várias coisas haviam me impressionado nele: sua personalidade autoconfiante, seu jeito protetor com as mulheres, seu jeito prematuro de lidar com o outro e sua capacidade de tornar “especiais” as coisas que ele gostava. Devia sentir o amor dos pais, pensei, senão, o que faria com que me olhasse daquele jeito, com aquela certeza de que não seria rejeitado? Pequeno homenzinho vive se safando bem dos problemas do dia-a-dia e tem certeza que é dele o “serviço mais pesado”. Será que ele vai se conservar assim no futuro? E quando vier a adolescência e ele despertar diante de todas as perversas injustiças sociais? Como fará “uma boa grana” sem estudos e sem oportunidades? Apresentar-se-á ainda como José Washington da Silva Neves, “ao seu dispor!”? Ou como mais um Zé Ratinho, “você perdeu!”? Quais instrumentos usará para ganhar dinheiro e levar a patroa para passear aos domingos? Resistirá às ofertas “tentadoras” oferecidas pela turma do tráfico? Que “serviço pesado” terá que fazer para ter uma “mulher bonita em casa”? Será um prazer para a sociedade ou mais uma ameaça?
Fiquei pensando nas palavras que ele me disse: “se vai fazer um bem, faz logo por completo” - eu fiz um pequeno bem “por completo” e tive um grato retorno. Nossos governantes poderiam aprender esta lição: façam o bem “por completo” para essas crianças carentes e suas famílias que a sociedade agradecerá. Que tal se o dinheiro “arrancado” do cidadão com tantos impostos for destinado, realmente, para a saúde e educação dessas crianças carentes e de suas famílias?
Que tal se o Mensalão ou Petrolão for desviado dos bolsos dos gordos parlamentares para dar uma vida digna aos nossos brasileirinhos? Que tal se, ao invés de nosso sistema criar tantos Ratinhos e Elias Malucos, transformar nossos pequenos Josés e Joãos em trabalhadores orgulhosos de si, e de suas famílias?
Convido nossos governantes a pensarem: se ao invés de criar falsos programas de assistencialismos ou caridades do tipo Bolsa Família ou Fome Zero, fossem criados recursos verdadeiros para investir nesses meninos e suas famílias, não estariam propiciando uma sociedade mais justa e menos violenta? Não é investindo que se lucra, plantando que se colhe e dando que se recebe?
Pois bem, a maneira de se conseguir uma civilização mais ética e mais humana no futuro, é investindo nesses brasileirinhos agora, “por completo”. O próximo bem, com certeza, será por conta deles. E a sociedade, ao invés de se envergonhar de seus representantes, muito agradecerá.