Mosca Itinerante

"Pode ser o sol da tarde

E essas coisas que ele traz

Dada a sua intensidade

Ou a calma do meu mundo"

Banda do Mar - Pode Ser

A história se repete. Já estive do outro lado da mesa. Metaforicamente falando. Eu repudio o olho no olho quando estou por cima da carcaça. Não se deve matar olhando nos olhos, porque rola assombração. Eu já estive do outro lado do monitor, da telinha de celular ou da linha. Ou nunca estive, só sumia. Agora ela está ali, puta da cara com o meu silêncio e com a minha resignada aceitação do fim. Uma mulher que quer te abandonar pode ser um bicho estranho: se não houver luta e humilhação, não tem graça. Ela não seria a primeira, e a primeira foi a única que conseguiu fazer com que eu me humilhasse de joelhos implorando por uma chance, fica, eu te amo, eu posso te fazer feliz e toda essa nojeira melosa desesperada de primeiro amor. A história se repete e de novo eu fico fora de mim, deixando superlativo meu interesse no vôo de uma mosca itinerante enquanto todo aquele oceano de sentimentos entre nós, pra mim, inexiste, e nele ela se afoga e me jura com os olhos que me mataria se pudesse ser inimputável de alguma forma. Você nunca lutou por mim. Você nunca me amou de verdade. Eu não signifiquei nada. A história se repete, e essas palavras repetidas por diferentes bocas em diferentes épocas só reafirmam aquilo que sempre ignoro: meu coração é solo árido para que o amor cresça forte, estenda seus tentáculos, faça essa fotossíntese no outro e sobreviva. Eu sou uma planta, querida. Eu sou uma maldita árvore estática e parasita. Pode ir. E ela estira o beiço, se levanta, pega a mala e sai. Eu? Fico na mesa olhando. E, aí sim, começo a sentir o eco de alguma coisa se quebrando lá dentro no fundo de mim. Eu sou doente, grito no meio da rodoviária. Ela para e vira. As palavras já me fogem de novo, um inferno. E se eu soltasse a frase de uma música que está se repetindo na minha cabeça? Eu solto. E um dia eu vou ficar bem, grito. Só pra te querer mais. Ela faz que vai voltar em minha direção. Eu prendo a respiração, ansioso. Mas ela não volta. Ela segue rumo à plataforma do ônibus que a levará pros braços de alguém vindouro. Eu suspiro de alívio e de dor. Não sei que porra quero. Fico prostrado diante de batatas fritas intocadas. Vendo a história se repetir. De novo. Parece karma. Mas um dia eu vou ficar bem, nessa porra.

29/06/2015 - 23h42m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 29/06/2015
Reeditado em 29/06/2015
Código do texto: T5294312
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