O Dia em que Fiquei Cega EC



O dia em que fiquei cega de raiva não esqueço, não! Vai e vem e de repente tudo volta à mente. E a raiva volta. Sou má? Devia perdoar? Não consigo. Talvez numa outra encarnação.

Naquele dia cheguei em casa quase quatro da tarde depois de dois períodos de aula. Os meninos tinham saído pra escola, que fica perto de casa. Estávamos só: a mocinha de dezesseis e eu. Joguei a bolsa na mesa e me atirei no sofá para descansar. Os meninos deixaram a porta destrancada. Moro em apartamento.
Acho que eles ainda não tinham atingido o portão quando a porta se abriu lentamente. Ficamos em estado de atenção. Os meninos tinham voltado, por quê? O quê esqueceram?
Mas em vez dos meninos entrou aquela besta, com uma faca na mão, que brilhava aos reflexos do sol da tarde de abril que entrava pela janela.
_ Ué, não se usa mais bater na porta para entrar na casa dos outros, agora? Disse minha filha que estava sentada num sofá embaixo da janela com os pés em cima do mesmo segurando os joelhos.

Nesse momento sentei-me no outro sofá.
- Nossa “seu” N... Jo no soi N! Disse em espanhol tentando me enganar e à menina.
E a faca brilhava. Ele virava de um lado pra outro. Estava de chorte vermelho, descalço e uma meia fina de mulher na cabeça. Reconheci assim que o vi. Quando se viu descoberto pulou pra cima de minha filha e a machucou no peito. Lutamos. Pedimos socorro. Ele acreditou que viria gente pela escada que era o mais rápido acesso. Elevador demora dependendo do andar em que esteja parado. Eu caí e ele pisou no meu peito e ergueu a faca para me esfaquear. Minha filha o agarrou enquanto eu o mordia com toda força na perna.

Ninguém veio. Ele saiu empurrado por mim e por minha filha, em meio a ataque e defesa. Quando ele viu que não havia ninguém ele tentou entrar novamente, esfaqueando a porta. Pedi socorro pela janela e as valentes donas de casa e mães, estavam no pátio querendo saber o que estava acontecendo. A nossa gritaria despertou o medo, o pavor de estar dentro de apartamento fechado. Os que ficaram dentro encostaram móveis na porta de entrada. Foi um tendel.

Lá embaixo, ele, morador do andar de baixo, disse que eu estava louca, que havia confundido ele com alguém pois eu pedia para que não o deixasse fugir e chamassem a polícia. Quando ele chegou ao portão um senhor que estava carpindo um quintal, veio subindo e encontrou com ele ali:
_Aquela dona está dizendo que o senhor fez alguma coisa lá. O que foi?
_ Não foi nada, não! Ela é louca! Vamos tomar uma cereja ali no bar.
_ Não! O senhor fica aqui que a polícia já vem vindo e o senhor se explica tudo direitinho.
Ele deu um empurrão no homem e saiu correndo. Aí todo mundo correu atrás dele. Que pena que não morreu! Bateram tanto nele e o amarraram num portão até a polícia chegar.

A polícia entrou em casa e descobriu em cima da mesa uma corda de varal. Na casa dele encontraram a faca lavada, mas com sangue ainda. Várias seringas pelo chão, a esposa dele dormindo... embriagada.
Foi preso e condenado só a doze anos de prisão. Queria que fosse prisão perpétua, juro!
Até hoje não consigo falar o nome dele. Foi em 1990 isso. O que provou no tribunal que era ele que tinha entrado em casa, pois ele jurava que não era ele, foi a tremenda mordida que lhe dei na perna para me livrar do pé dele no meu peito me forçando a ficar no chão e da faca. Acredito que fiquei cega de raiva e com muita força. Minha filha nem se fale. Não caiu uma única vez. Como os pés estava em cima do sofá ela deu um chute nele que ele se desequilibrou e começamos a luta.

Ele imaginava que naquela hora eu estava na escola e que minha filha estava sozinha até eu chegar. Sempre eu fazia uma “cera” para sair, mas naquele dia resolvi sair logo. Sequer conversei com a colega que sempre vinha comigo e que morava no prédio ao lado.

Que raiva daquele ordinário, cafajeste entrar em casa. Dias antes foi pedir tomate emprestado. Depois termômetro, gás de cozinha... Sabia que minha porta quase nunca estava chaveada. A intenção dele era a mais abjeta que pode existir. Foi condenado por unanimidade. Acredito que ainda tenho muita, muita raiva dele. Queria que estivesse na prisão até hoje pra nunca mais sair. Pra ele sequer pensar em repetir seu intento que poderia ter dado certo. Como dá pra tantas meninas e mulheres.

Por isso não tenho dó de bandido. E quem tem algo a falar em favor deles, fico novamente cegada. É uma raiva que nem nome tem. O diabo tomava cerveja com meu marido na minha sala. Eu o ajudava pois era um elemento que conseguia emprego. Sempre desempregado, mulher alcoólatra. Eu não tinha e não tenho culpa da vida que ele levava. Ele sondou minha casa. Ele planejou. Só que Deus foi e é MAIOR e, me fez vir logo para casa. Eu costumava tomar café na saída, conversar com quem estava chegando. Eu me demorava para chegar em casa. Às vezes esperava os meus filhos chegarem na escola para eu sair.
Conforme o dia, e o horário, o tempo, se fecho os olhos vejo aquele maldito na minha casa com a faca brilhando e ele falando em espanhol. Nem que ele estive com armadura de ferro, ele passaria despercebido por mim, ou me enganaria. Ele vivia no pátio, andando pra lá e pra cá, atoa. Por isso não gosto de lembrar daquele dia. O dia em que fiquei cega de raiva que até hoje não me curei.



 Este texto faz parte do Exercício Criativo - O Dia em que Fiquei Cego
Saiba mais, conheça os outros textos:

http://encantodasletras.50webs.com/odiaemquefiqueicego.htm

 
MVA
Enviado por MVA em 29/06/2015
Reeditado em 29/06/2015
Código do texto: T5293824
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.