Me esqueci.
Tudo estava planejado. Lembro que havia programada par e passo o conteúdo, mas esqueci. Seria um lapso de memoria ou algo mais intenso? Vagamente, recordo que não foi a primeira vez.
O que estará acontecendo? Esse pensamento, essas recordações, são partes da alma, do existir, como se vão, deixando parcas pegadas?
Reconstruindo os registros dos fatos cotidianos e de posse de conhecimentos científicos, estava inclinado a acreditar que alguma substância, faltava no meu organismo, precisamente na caixa encefálica. Coisas do dia a dia, que não é comum esquecer, passaram a ser vícios corriqueiros.
A última, ou penúltima vez, que fui ao dentista, recomendou com veemência que eu escovasse os dentes diariamente.
Sinto constantemente uma presença ao meu lado. Vestido, todo de branco, sem pronunciamentos ou gestos rudes, segurando me pela braço. Parece que estou vendo coisas, ou então a dimensão celeste espiritual invadiu meu cotidiano. Só não entendo porque me ajuda na higiene pessoal.
A nutricionista me disse que tenho que fazer três refeições diárias. Enfatizou... Todos os dias!
Esqueci o nome do médico. Recordo que falou em Alzheimer. Uma moléstia neurodegenerativa que provoca o declínio das funções intelectuais, redução das capacidade de trabalho, interferindo no comportamento nas relações sociais... sei lá!
Tão querendo me interditar!
O ortopedista insistiu que devo usar a porta para sair e entrar no apartamento. Nada a ver com eu morar no segundo andar.
Estava indo a fisioterapeuta.
Normalmente após uma certa idade, eu sei, isso é comum. Contudo, essa ida era por conta de uma bota de gesso que usei por 64 dias.
Já havia tirado o gesso. Pé esquerdo... ou será direito?
Bem, estou com uma bota ortopédica, dessas de amarrar com fivelas, e um solado que parece pneu de camioneta.
Chico balanceado é um doce servido normalmente como sobremesa. Será que o balanceado tem a ver com a consistência do Chico ou com suas qualidades nutricionais?
Tenho que ver a fisioterapeuta.
Rompi o tendão. Contei, para quem me perguntou, que foi futebol, mas a última coisa que lembro, antes da queda é que do parapeito da janela se avistava um monte de areia. Não hesitei. Pulei. Foi melhor assim.
Vou lá.
Ela prometeu devolver todos os movimentos do pé. Mas....Não lembro se lavei... será que lavei? Um dia de tênis já é um suplício, mas todos esses dias de gesso e equipamentos ortopédicos!? Que cheiro!
Entrei no banheiro. Comecei a suar. Se tiver com chulé é bem capaz de me expulsar do seu consultório. Encarcerei-me no banheiro... O batimento cardíaco subindo...Tudo sempre tem uma solução, pensei, pra me acalmar.
Uma visão salvadora foi o alívio. Quando um cidadão saiu de um dos compartimentos sanitários, pude visualizar sobre a janela a solução.
Retirei a bota, as meias, arregacei as calças e sem misericordia fartei toda a região com uma camada generosa.
O perfume foi tomando conta do ambiente e me acalmando.
Consultei o frasco, estava escrito: glade, neutra frech, eficiente para cheiros de gordura, mofo, animais domésticos e tabaco, agite bem antes de usar....
Entrei no consultório com um sorriso!
Sem a bota, sem a meia e a calça arregaçada.
Feliz... como se tivesse o palito premiado!