Horizonte sem fim

Seu Chico,

Cadë o canivete “Corneta”que o senhor tinha quando vim aqui da outra vez?

Olhou para ver quem de chofre faria um pergunta desta, parece que me reconheceu de outras vezes que o inquiri.

- Ele não aguentou a última afiação e quebrou a lamina, mais um pedaço meu que se foi. Assim é a vida, morremos aos pedaços – emendou em seguida.

- O Senhor está falando que o canivete, faz parte assim, importante da sua vida?

- Não, o canivete eu compro outro que tem a mesma serventia, embora aquele tinha comigo coisa de 20 anos, picou muito fumo, descascou muitas laranjas, capou muito leitão e leitoa, e ouviu muita prosa de mim comigo. Estou falando de emoções, sentimentos, amizades e amores que a vida com seu parceiro cruel, o tempo, vai levando para outro lado.

Acabou de picar o fumo, e com muita agilidade enrolou a palha em volta, tirou a velha binga, que eu já tinha conhecido da outra vez, o mesmo ritual, tragou a primeira vez, soltou a fumaça espalhando a com a mão, olhou para aquele mar de montanhas, em silêncio.

- Olha seu moço, a minha mãe que está beirando os 100 por baixo, já perdeu o marido, um filho, todas as irmãs mais velhas, todos os irmãos homem, fora um meio irmão, que ela não se relaciona, todas as amigas da idade dela. Já foram para o outro lado os ouvidos dela também, o andar elegante, e a vontade de viver. Só tá deste lado um fiapinho de uma vida abundante. Isto para ela, pois para nos continua a ser a mãe de sempre.

Se ajeita na raíz da paineira, observo que não se assenta mais nos calcanhares, como quando o conheci. Pergunto por quê?

- Moço, o tempo levou alguma coisa dos meus joelhos que me davam o equilíbrio para aquele jeito de descansar. A gente vai se acomodando de outro jeito.

Pergunta para mim:

- Do que somos feitos?

Não respondo, sei que é uma pergunta para ele mesmo.

- Ossos, sangue, pele, cabelos? Não, isso só é sustentação do que somos. Somos feitos de sentimentos, emoções, alegrias e tristezas que compartilhamos com os nossos queridos e até inimigos. Quando cada um deles é levado pelo tempo, é um pedaço da gente que morre. A vida é assim, a morte faz parte, ela abre espaço removendo os mais velhos para dar espaço para os novos.

Depois de um longo silencio, pergunto timidamente,

- Seu Chico e aqueles que vão de repente, muito cedo, sem dar tempo de nos despedir?

Ele traga profundamente, solta a fumaça, mas desta vez não a espalha com as mãos.

- Já me perguntei isto muitas vezes, não achei resposta, veja esta fumaça, eu fumo desde que me entendo por gente, já soltei muita fumaça por ai, mas não consigo conduzi-la, e nem sei exatamente como será seu desenho, cada uma é diferente da outra, depois que a soltamos não somos mais donos dela. Penso que o Criador de todas estas maravilhas deu a liberdade de cada uma seguir o seu vento, ou não.

Volta de novo seu olhar para mim, como a verificar se eu continuava escutando-o.

- Este jeito de morrermos, aos pedaços, vai nos conformando com a morte, temos a esperança de encontrar todos os nossos pedaços do outro lado. Não sei se é assim, ninguém sabe, mas não quero acreditar que será diferente. Desconfio que será diferente, por isso vou ficando por aqui, que a vida mesmo assim é muito boa, não acha? No caminho também são acrescidos pedaços, novos amigos, filhos, netos, sobrinhos...isto nos mantém aqui enquanto der.

- Seu Chico, o que o senhor acha destas pessoas que são mantidas vivas ligadas por máquinas por um longo tempo?

-Medo de morrer, falta de espirito aventureiro, conhecer o desconhecido...Já avisei aos meus, quando me faltar a visão para enxergar as flores e os passarinhos de dia e as estrelas e a lua de noite, quando não tiver prazer em apreciar uma branquinha, um queijo ou doce de Minas, de participar de uma boa prosa com os amigos, ver o encanto das mulheres, o sorriso das crianças...deixem me ir, ficar aqui, por quê e pra quê? Não quero ser cruz para os meus queridos.

Silencia-se e eu volto a inquiri-lo,

- E estas pessoas com profunda tristeza, que parecem meio morta meio viva?

- Ara seu moço! Não tenho capacidade para responder isto, mas tenho experiência, quase perdi um compadre com esta tristeza, ele foi se enfarruscando, macambuziando, parou de trabalhar, não ouvia mais os pássaros cantando da sua janela, uma de suas paixões. Foi se amofinando, nem mais proseava com os amigos. Tinha perdido tempos atrás gente de sua querência.

Se aquietou, apagou o cigarro, guardando para mais tarde, e continuou,

- Não queria perder este amigo, meu pedaço, para o outro lado. Tratei de resgatá-lo, fui e pressionei para que saísse da cama e andasse comigo, um dia cem metros, depois duzentos...levei ele para o patrão do vizinho que era médico, deu uns remédios. Arrumei encomendas para ele, que esculpia madeira, fazia pilão, inventei encomendas, busquei no mato madeira para ele trabalhar, não desenconstamos dele enquanto não se aprumou de novo. Mas também vi gente que não teve jeito, foi atrás da companheira que tinha partido.

Agradeci a ele com um aceno e o deixei lá com seu olhar perdido para aquele horizonte sem fim.

Defranco
Enviado por Defranco em 27/06/2015
Reeditado em 19/04/2016
Código do texto: T5291402
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