Papagaio
O casamento estava programado para o final do ano, depois de uma década de namoro. Jussara pensava em antecipar a cerimônia por conta dos problemas de saúde do pai, mas o quadro se agravou repentinamente e não houve como reverter a situação, deixando uma lacuna na família. A irmã mais velha morava distante e não demonstrou interesse em cuidar da mãe com idade avançada, mesma situação do caçula, que há muito deixara a casa materna para alcançar sua independência financeira. Depois de algum tempo a mãe acabou sucumbindo, acometida por profunda tristeza.
Logo ficou evidente a disputa entre os irmãos pela partilha dos bens. Por conta da enfermidade paterna, os gastos com assistência médica dilapidaram o patrimônio familiar, deixando uma extensa lista de compromissos assumidos. Depois de muita encrenca o imbróglio finalmente foi solucionado judicialmente com a divisão proporcional a cada herdeiro, após a quitação de todos os débitos junto aos credores. Ironicamente coube-lhe tão somente a guarda do estimado papagaio, recusado pelos demais por sua mania em incomodar os moradores com seu falatório ininterrupto impregnado de expressões proibidas para menores, uma lembrança viva do irreverente e saudoso pai.
Sem outra alternativa a mulher se viu obrigada a cuidar do psitacídeo, mesmo contrariada com seu comportamento bizarro recorrente. Por diversas vezes tentou incutir em seu vasto repertório de interjeições promíscuas alguma coisa mais amena que permitisse a presença do animal na companhia de crianças e visitantes sem maiores constrangimentos, mas o empenado teimava em destilar seu repertório a quem quisesse ouvir, sem qualquer distinção. Ressentido com a ausência do dono repetia sistematicamente tudo o que lhe fora ensinado, exibindo suas tiradas escatológicas em volume considerável até que finalmente foi levado ao ambiente rural, onde poderia gritar à vontade sem que causasse incômodo a alguém.
Eis que um belo dia a filha se deparou com um envelope lacrado esquecido entre os pertences do genitor. Era um testamento registrado em cartório, que destinava alguns bens para os herdeiros legais, até então desconhecidos pela família. O pai fora previdente o suficiente, ocultando deliberadamente a propriedades dos imóveis no intuito de preservar parte do patrimônio ante a doença que lhe consumia lenta e inexoravelmente. Ocorre que uma cláusula condicionante exigia comprovadamente a guarda e o bem estar do bendito papagaio pela família, que diante da situação tentou desesperadamente reaver o animal. Em vão, pois o “louro” desbocado agora fazia companhia ao estimado dono, desfiando seus impropérios em outras paragens bem mais sublimes que as do insalubre convívio humano. Apesar das ações na justiça questionando a decisão maior do patriarca, sua derradeira vontade prevaleceu. A ave acabou contribuindo, sem querer, com diversas entidades assistenciais, contempladas com doações tão generosas e muito bem vindas.