Uma grande cachorrada
De acordo com a Associação Nacional de Fabricantes de Alimentos para Animais, o Brasil possui aproximadamente 28,8 milhões de cães. Obviamente que esse é um valor estimado, uma vez que os animais registrados não são cadastrados num sistema único de dados, acrescentando-se a esse rol os cães sem raça definida e os que vivem em estado de abandono, perambulando pelas ruas. Ainda segundo essa entidade, nas duas últimas décadas houve um crescimento extraordinário na comercialização de rações e seus complementos, de acessórios e tudo o que se refere aos “pets”, denominação importada de outro idioma, inserida no cotidiano do brasileiro e que faz referência aos animais.
Interessante seria conhecer o método utilizado para quantificar com exatidão a soma encontrada nessa conta altamente fantasiosa. É só sair pelas ruas e sem muito esforço nos deparamos com cães na imensa maioria das residências, algumas com vários deles mostrando toda a precisão de suas privilegiadas cordas vocais, para concluir que o resultado dessa adição é algumas vezes superior daquele divulgado.
Por conta dessa expressiva população canina convivendo no ambiente doméstico, é certo que alguma parte integrante nessa relação será incomodada, mostrando uma interação nem sempre pacífica. Na área urbana o nível de ruídos extrapola os limites permitidos pela legislação ambiental, mesmo em municípios menores. Some-se a essa situação as intermináveis demonstrações de supremacia canina e está armada a balbúrdia. E quem leva a pior nessa conturbada convivência é sempre o ser humano, que encontra dificuldades para fazer uso de seu sagrado direito ao merecido descanso, especialmente no período noturno.
Recentemente a mídia publicou um artigo que discorria sobre o excesso de ruídos verificados numa cidade paranaense de médio porte, provocado por pessoas que passavam a noite nas vias públicas consumindo bebidas alcoólicas e promovendo algazarras até altas horas da madrugada. Os comentários dos leitores vieram às dezenas, sendo que um deles em especial sugeriu que os incomodados se mudassem para o município vizinho, pois ali decerto não haveria barulho. Um equívoco, uma vez que nas localidades menores também não se encontra a tranquilidade desejada, por motivos diferentes. A população sofre com o “destempero oral” dos amigos de quatro patas, que se encarregam com toda a competência de importunar os tímpanos alheios diuturnamente, a ponto de não se conseguir sequer ouvir o noticiário televisivo.
Tem-se a impressão que o comportamento é contagioso, uma vez que a “senha” para a apresentação de gala é um simples latido. Daí para a coisa descambar num tremendo escarcéu é um milésimo de segundo, em que se destacam um variado e bem ensaiado “repertório” canino. E cá ficamos nós, sujeitos a essa onomatopeia sem limites, coagidos a aturar os instintos ancestrais dos dingos, sem que seus proprietários tomem alguma providência efetiva para minimizar o desconforto com o aparelho auditivo alheio. Em que pese a simpatia e o apreço que dedico aos meus dois fiéis companheiros que se distinguem nesse ponto com os demais, os excessos causam incômodos e irritação.
A perturbação do sossego noturno motivou até a simpática vizinha, que beirando os 75 anos e acometida por insônia e hipertensão arterial, decidiu pôr fim a cachorrice desvairada utilizando métodos próprios e pouco ortodoxos. Porém, de nada adiantou lançar mão de seus meios altamente explosivos, uma vez que a mais potente bomba arremessada em direção à cachorrada sequer intimidou o menor deles. É a adaptação ao meio falando mais alto.
Enfim, estamos todos numa mesma encruzilhada. Sofremos de males diferentes, mas com sintomas semelhantes. Ou me conformo com a situação, ou transfiro meu domicílio para o campo. Para permanecer por aqui se faz necessário o uso de alguns acessórios extras como protetor auricular, um travesseiro recheado com penas de ganso ou algo parecido, ao tentar pegar no sono dos justos. A segunda hipótese é de difícil concretização, pois há que se ter a algibeira bem recheada, o que não é o caso. Como não posso simplesmente mudar de endereço, torço para que a baixa temperatura acalme naturalmente os impulsos caninos. Caso contrário, durma-se com um barulho desses...