Contar estrelas
Dou alguns passos em direção à porta. Lá fora, é tão íntimo quanto aqui. O quintal sombrio, as estrelas pontilhando o negrume do céu sem lua. Percorro as vielas estreitas, esgueirando-me entre os canteiros mal desenhados, com a cabeça para o alto. Sinto uma dor no pescoço, mas insisto na manobra radical. É bom ficar assim, feito criança, olhando o céu, apenas o vazio infinito. Mas quero viver este momento evasivo, no qual a solidão se esvai como balão estourado. Fugidio, brigando com árvores, destelhando nuvens. Agora que a energia faltou, bom viver na escuridão quase total da noite. Não fossem as estrelas...Quisera não sair nunca mais do meu quintal, nem sentir o cheiro agridoce das velas. Ainda sonho. Sonho em ver estrelas mais de perto, com uma luneta colorida. Quisera ver a vida, na abundância das relações, e quem sabe, descrever o que me ficou às escuras, escondido na miopia de meus sentimentos ou percepções. Nunca tive a agudeza dos espertos, a argúcia dos empreendedores. O máximo que administro é o cultivo de minhas plantas. Fico a observar o dia e não o deixo passar sem fazer alguma coisa que me enleve, me dê alegria, me mostre algo mais do que meu coração descortina. Quero não apenas ver, mas experienciar as urdiduras, as tramas triviais do cotidiano. A mulher que desandou esquina abaixo, descendo a ladeira, o menino que regurgitou o sorvete na cara da mãe, a moça que pintou o piso com o lápis de sobrancelha, beijando o chão, o rapaz que deu duas piruetas no ar e transformou a moto numa sanfona, o homem que atravessou o sinal, destemperado, gritando aos brados, faminto de raiva, porque o companheiro de trajetória lhe cortou o caminho. Mas não quero tragédias, não. Que ninguém morra ou se machuque. Só que permitam gargalhadas. Que possa rir, sem chorar e que eles aprendam com os erros, se não o fizerem com a maturidade. Também quero ver bandeiras balançando, gente se enfileirando num mesmo objetivo, flores vicejando, pássaros voando em v, andorinhas visitando as tribos, adolescentes inventando amor em cio de primavera. Quero viver. Agora, porém, quero só voltar a cabeça pra cima, passear pelo meu jardim disforme, olhar para o céu escuro e contar estrelas. Com sorte, pego até uma verruga.