O próximo
O próximo
Jander se aproxima de mim e conta que toda quinta leva a esposa pra quimio. Câncer na laringe. Ele sorri e não consigo compreender o traçado de seus lábios. Sua postura encolhida reflete uma doença na coluna que tem até apelido, volta e meia ele fala, sempre esqueço. Flávio está atrás dele, taciturno, preocupado com a moradia em vias de ser perdida. Estou entre eles e outros, acho o espaço apertado. Ontem tirei foto com meus filhos, apareci tão encolhido que parecia filho deles. Você precisa melhorar essa postura, me disse uma senhora loira, baixinha. Jander torna a vir para o meu lado, fala das sessões de quimio, do ônibus que não chega, da fadiga da mulher, por isso vai embora cedo, confidencia, e logo em seguida arremata: tem uns aí que espalham que saio antes do horário por causa da novela. Filhos da puta, pensei. Então ele segura no meu braço, os olhos claros, aquele sorriso feito serpente em leito seco e indaga: te contei que minha filha morreu da mesma coisa? Ano passado. Enterrei ela ano passado... Não aguento. Não aguento nem olhá-lo nos olhos, nem ouvi-lo, ponho a mão em seu ombro e peço licença, chego noutro espaço apertado, detesto lâmpada fluorescente. Procuro um banco retirado e dois segundos depois senta do meu lado o Antenor, gremista doente, e dispara ter se mudado para São Paulo no verão, que morava em Santa Maria, que estava lá no dia da tragédia, falava com uma amiga médium ao telefone quando ela pediu para desligar para atender a segunda linha. Retornou logo em seguida, precisava sair às pressas, algo estava acontecendo, fora instruída para se deslocar a um local determinado, ficou até o raiar do dia encaminhando os que estavam na boate. Um desconhecido de nome Edmilson, que eu nem vi chegar, se intrometeu no relato do Antenor para exibir conhecimentos da área ao afirmar que a tal médium devia ser muito desenvolvida, do contrário os "clientes" não poderiam vê-la. Dei de ombros, para tudo existe um protocolo e uma exceção ao protocolo. Eles se levantam para conversar noutro local e Celeste chega trazendo café e biscoitos. Celeste quase não fala nada, rói os biscoitos, está cansada, então conta que a gata nova, a que chegou grávida no natal está grávida de novo. Para quem, até pouco tempo dividia seu quintal com dois gatos e um cão, de repente passou para cinco gatos e no melhor dos prognósticos contará com nove antes do fim inverno. Quer saber, desabafa ela, to nem aí, tenho planos de ganhar 32 milhões na mega sena e montar um instituto para prestar ajuda, posso cozinhar, pessoas fariam fila e ficariam felizes em provar minha comida. Quer me ajudar? Não respondo. Refreio o ímpeto de levantar de novo e arranjar outro banco retirado. Sorrio amarelo. Sonho todos os dias em acordar a 20 metros de uma praia semi deserta banhada por mar espelhado, plácido, manso como uma muda de hortelã, sonho em me deitar na areia sabedor que quanto mais eu fizer isso, mais disso eu terei. Gostaria de contar para alguém, a título de desabafo, talvez. João me liga no celular, passou o dia na fila do INSS. Depois de 17 internações por conta de um pâncreas disfuncional, está à espera de uma aposentadoria por invalidez e um transplante. Sua ligação busca o consolo de uma voz amiga. Eis-me aqui. Com o local apinhado, me desloco para uma área descoberta e digo que tudo vai ficar bem. Preciso mais dele do que ele de mim. Toda vez que o João desliga, desliga dizendo muito obrigado. Eu que agradeço. Nossas conversas acompanham e sustentam nossas vidas. Respiro fundo. Milton percorre cada um dos presentes perguntando quem pode dar uma carona pro Flávio, taciturno, que vai pra casa fazer as malas e se mandar pra algum lugar no dia seguinte, provavelmente um albergue. Chove lá fora. Celeste se prontificou a dar carona. Jander voltou para um abraço e se despedir. Tem de ir buscar a mulher. Sinto uma leve tontura. Partirei em breve para uma cama quentinha com lençóis limpos. Sei que ao despertar me virá à mente a praia bege, silenciosa, e um céu azulão grande como tudo o que existe que me dirá simplesmente: eu estou em você e vice versa. Tem sido assim há algum tempo. A senhora loira baixinha foi a penúltima a descer as escadas, me aconselhou a fazer RPG. Coube a mim apagar as luzes e trancar a porta. Amanhã caberá a outro esta tarefa. No mais, as pessoas com quem converso não acreditam nessa história, e as pessoas que eu gostaria que acreditassem não estão nem aí.
(Imagem: W. Eugene Smith)
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Jander se aproxima de mim e conta que toda quinta leva a esposa pra quimio. Câncer na laringe. Ele sorri e não consigo compreender o traçado de seus lábios. Sua postura encolhida reflete uma doença na coluna que tem até apelido, volta e meia ele fala, sempre esqueço. Flávio está atrás dele, taciturno, preocupado com a moradia em vias de ser perdida. Estou entre eles e outros, acho o espaço apertado. Ontem tirei foto com meus filhos, apareci tão encolhido que parecia filho deles. Você precisa melhorar essa postura, me disse uma senhora loira, baixinha. Jander torna a vir para o meu lado, fala das sessões de quimio, do ônibus que não chega, da fadiga da mulher, por isso vai embora cedo, confidencia, e logo em seguida arremata: tem uns aí que espalham que saio antes do horário por causa da novela. Filhos da puta, pensei. Então ele segura no meu braço, os olhos claros, aquele sorriso feito serpente em leito seco e indaga: te contei que minha filha morreu da mesma coisa? Ano passado. Enterrei ela ano passado... Não aguento. Não aguento nem olhá-lo nos olhos, nem ouvi-lo, ponho a mão em seu ombro e peço licença, chego noutro espaço apertado, detesto lâmpada fluorescente. Procuro um banco retirado e dois segundos depois senta do meu lado o Antenor, gremista doente, e dispara ter se mudado para São Paulo no verão, que morava em Santa Maria, que estava lá no dia da tragédia, falava com uma amiga médium ao telefone quando ela pediu para desligar para atender a segunda linha. Retornou logo em seguida, precisava sair às pressas, algo estava acontecendo, fora instruída para se deslocar a um local determinado, ficou até o raiar do dia encaminhando os que estavam na boate. Um desconhecido de nome Edmilson, que eu nem vi chegar, se intrometeu no relato do Antenor para exibir conhecimentos da área ao afirmar que a tal médium devia ser muito desenvolvida, do contrário os "clientes" não poderiam vê-la. Dei de ombros, para tudo existe um protocolo e uma exceção ao protocolo. Eles se levantam para conversar noutro local e Celeste chega trazendo café e biscoitos. Celeste quase não fala nada, rói os biscoitos, está cansada, então conta que a gata nova, a que chegou grávida no natal está grávida de novo. Para quem, até pouco tempo dividia seu quintal com dois gatos e um cão, de repente passou para cinco gatos e no melhor dos prognósticos contará com nove antes do fim inverno. Quer saber, desabafa ela, to nem aí, tenho planos de ganhar 32 milhões na mega sena e montar um instituto para prestar ajuda, posso cozinhar, pessoas fariam fila e ficariam felizes em provar minha comida. Quer me ajudar? Não respondo. Refreio o ímpeto de levantar de novo e arranjar outro banco retirado. Sorrio amarelo. Sonho todos os dias em acordar a 20 metros de uma praia semi deserta banhada por mar espelhado, plácido, manso como uma muda de hortelã, sonho em me deitar na areia sabedor que quanto mais eu fizer isso, mais disso eu terei. Gostaria de contar para alguém, a título de desabafo, talvez. João me liga no celular, passou o dia na fila do INSS. Depois de 17 internações por conta de um pâncreas disfuncional, está à espera de uma aposentadoria por invalidez e um transplante. Sua ligação busca o consolo de uma voz amiga. Eis-me aqui. Com o local apinhado, me desloco para uma área descoberta e digo que tudo vai ficar bem. Preciso mais dele do que ele de mim. Toda vez que o João desliga, desliga dizendo muito obrigado. Eu que agradeço. Nossas conversas acompanham e sustentam nossas vidas. Respiro fundo. Milton percorre cada um dos presentes perguntando quem pode dar uma carona pro Flávio, taciturno, que vai pra casa fazer as malas e se mandar pra algum lugar no dia seguinte, provavelmente um albergue. Chove lá fora. Celeste se prontificou a dar carona. Jander voltou para um abraço e se despedir. Tem de ir buscar a mulher. Sinto uma leve tontura. Partirei em breve para uma cama quentinha com lençóis limpos. Sei que ao despertar me virá à mente a praia bege, silenciosa, e um céu azulão grande como tudo o que existe que me dirá simplesmente: eu estou em você e vice versa. Tem sido assim há algum tempo. A senhora loira baixinha foi a penúltima a descer as escadas, me aconselhou a fazer RPG. Coube a mim apagar as luzes e trancar a porta. Amanhã caberá a outro esta tarefa. No mais, as pessoas com quem converso não acreditam nessa história, e as pessoas que eu gostaria que acreditassem não estão nem aí.
(Imagem: W. Eugene Smith)