Incrível invenção humana

Dentre as infinidades de invenções da raça humana está a contagem do tempo, que é a forma de registrar o movimento de translação da Terra em torno do Sol e de rotação sobre seu próprio eixo. Viajando a 50.000 quilômetros por hora, nosso planeta leva 365 dias para concluir sua órbita em torno do astro-rei e 24 horas para completar seu giro sobre si mesmo, deixando muita gente preocupada em não perder a hora diariamente. Dessa maneira, inventamos um jeito engenhoso de fracionar o tempo conforme nossas conveniências. Como somos regidos por convenções preestabelecidas, estamos sempre à procura de pretextos para justificar os diferentes acontecimentos. A passagem de ano é um típico exemplo disso. Tratamos do assunto como se realmente uma nova era estivesse prestes a dar um novo rumo em nossas vidas. Somos contemplados com mensagens desejando um “venturoso ano novo” ou “que todos seus sonhos sejam realizados”. É a época em que as pessoas se mostram mais tolerantes e carregam no semblante uma alegria incomum, como se algo de bom realmente estivesse para acontecer com a mudança do calendário.

Passada a euforia da virada de ano que incluíram abraços efusivos, desejos de bem-aventurança até para desconhecidos, fogos de artifício, mesa farta, alguns espumantes de qualidade duvidosa e muita caloria acumulada, a realidade finalmente bate à nossa porta. O dia seguinte que determina o começo de uma nova época nada tem de diferente. A rotina é a mesma de sempre. Com o agravante que por conta das festas de fim de ano, as dívidas se acumulam. É tempo de apertar os cintos, pois os tributos a que estamos sujeitos estarão batendo à nossa porta sem cerimônia alguma. IPVA, IPTU, matrícula, mensalidade do colégio e da faculdade, do transporte escolar e outros nos aguardam de braços abertos. Sem esquecer o carnê (ainda) volumoso do financiamento do carro, as parcelas dos (vários e desnecessários) cartões de crédito, as contas atrasadas no mercado, na farmácia, no posto de combustível. Tudo isso contabilizado com a viagem ao litoral e outras programações familiares de última hora. Então, onde estão as mudanças que idealizamos no limiar de uma nova era?

Esperar e desejar só coisas boas para o próximo ano é uma tremenda enganação, proposital e deliberada. A realidade é bem diferente e se não houver determinação, atitudes e posicionamentos firmes, as coisas continuarão como antes. É como aquele amigo inconveniente, apreciador inveterado das iguarias etílicas, que jura de pés juntos abandonar de vez a bebida no próximo ano. Ou a vizinha vaidosa que com dificuldades para se manter no manequim desejado, garante entrar em forma na era vindoura. Ou ainda o parente folgado que vive pedindo dinheiro emprestado (sabe-se lá quando finalmente resolver procurar trabalho), devolverá tudo com juros. Nesses casos específicos está presente o tempo, fator preponderante para determinar o desenrolar dos acontecimentos.

A mais implacável das invenções prova a todo instante que estabelece sem compaixão o rumo de nossa vida. Que o digam os calouros atrasados, que perderam as provas do vestibular por míseros segundos, ou o persistente apostador da loteria que deixou de registrar em tempo hábil sua cartela e viu o prêmio perseguido por décadas escapar-lhe das mãos por minutos. Como não podemos nos livrar do tempo, o melhor a fazer é conciliar nossos compromissos com os ponteiros do relógio. Porque daqui a pouco chega o Carnaval, a Páscoa, o Dia das mães, o Dia das Crianças, Finados, Proclamação da República, Natal e finalmente, mais uma mudança no calendário. E as coisas recomeçam novamente, com cartões de crédito, e-mails, mensagens de todo tipo, contas a vencer e os mesmos problemas de sempre. Decididamente, somos eternos reféns dessa incrível invenção humana.