INVENTÁRIO DE EQUÍVOCOS
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Anacronismo é uma falha, um erro que o escritor comete ao situar pessoas, acontecimentos, cenas, situações e objetos fora do tempo em que aconteceram. O anacronismo tende a ocorrer na prosa, principalmente biográfica e ficcional de caráter histórico. Diz-se ser um pormenor irrelevante que não compromete o sentido e a estrutura das obras. Porém, por mais que isso pareça um erro banal, ele pode interferir em um estudo de história. Tome, por exemplo, Rei João (1598) de Shakespeare, que coloca na obra referências a canhões num tempo anterior à utilização de artilharia em Inglaterra.
O anacronismo é, de modo geral, provocado por deslizes involuntários. Mas, às vezes, desempenha função especial em narrativas cômicas, e, nesse caso, é usado propositalmente pelo escritor. Por um lado, os historiadores, no desafio diário da escrita, tentam sempre escapar do problema do anacronismo. Um "erro mortal" a ser evitado em toda e qualquer pesquisa séria e bem executada.
Como lapso de memória ou deslize involuntário é digno de nota e significante exemplo do excesso de anacronismo, a obra Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro, do jornalista paulista Daniel Piza, lançado pela Imprensa Oficial de São Paulo no fim de 2005. A leitura dos especialistas demonstra que o livro está repleto de anacronismos, ou seja, de erros. Veja alguns deslizes de Daniel Piza:
• Comparando Bentinho, de Dom Casmurro, ao Otelo de Shakespeare, o biografo diz que o personagem de Machado de Assis "morreu e matou por ciúme". Bentinho não mata nem morre no livro.
• A biografia diz que Dom João VI transformou o Brasil em vice-reino em 1808, quando o país já tinha este status desde o século anterior.
• O presidente Deodoro da Fonseca é chamado de "Marechal de Ferro", apelido que pertence ao seu sucessor, Floriano Peixoto.
• O brasileiro José Bonifácio, político do império e "patriarca da independência", é identificado como um intelectual português.
• Um personagem de Dom Casmurro, José Dias (o agregado que adora usar superlativos) é rebatizado como João.
Um livro como esse deve ser uma fonte de dados confiáveis. O anacronismo em excesso, talvez pelo desprezo da simples revisão de nomes, conceitos e datas, torna o livro imprestável. Neste caso, configura-se um pecado grave.
Sobre o escritor que interpreta vultos do passado e acaba criando uma nova compreensão dos mesmos, Fernando Jorge – escritor e historiador - diz:
"É bem difícil julgar certos vultos do passado. Existiram homens estranhos, paradoxais, que suscitaram opiniões apaixonadas e, ainda hoje, continuam a ser bastante discutidas. Veja-se Napoleão. Para Taine, teria sido um típico Imperador, com todas as características acentuadamente definidas: o cinismo, o amadorismo, a ambição desmesurada, a sensualidade pervertida. Segundo outros, era um gênio idealista no mais puro sentido. O fator tempo, nossas idiossincrasias, influem de modo decisivo em nosso julgamento." ®Sérgio.
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Fonte: Revista Veja; edição 1944, fevereiro de 2006.
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